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Seguranças privados despejam associação de ajuda social

Várias dezenas de pessoas estão concentradas no Largo de Santa Bárbara, em Lisboa, em resistência a uma tentativa de despejo que consideram estar a decorrer à margem da lei.

Desde o dia 9 de maio deste ano que funcionava, no número 9 deste Largo, o Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara. Este espaço foi instalado por um conjunto de cerca de 50 voluntários que têm estado a trabalhar, desde o início da epidemia do Covid-19, em várias cantinas solidárias na zona da Graça e Arroios. 

Catarina Duarte, uma das voluntárias, relatou à A Voz do Operário que desde os primeiros dias de funcionamento das cantinas solidárias existentes no bairro que se aperceberam que os utentes chegavam antes da hora de abertura destes espaços, procurando outro tipo de apoios, como local para lavar a roupa, carregar o telemóvel, ou até questões mais básicas como acesso a água potável. Como forma de dar uma resposta eficaz a estas necessidades emergentes, resolveram instalar o centro de apoio no espaço de uma antiga creche, abandonado desde 2018.

Interesses especulativos atropelam esforço humanitário

Na passada quarta-feira, um representante legal dos proprietários, uma advogada, deslocou-se ao local e chamou a polícia para que fossem retiradas as pessoas. A polícia terá informado então que não poderia levar a cabo essa acção, tendo o processo que passar pelos trâmites legais. Catarina refere que foi apenas levantado o auto e identificados alguns presentes no local.

Na ausência da resposta pretendida por parte das forças de segurança, a representante legal optou por esta abordagem, pela calada da noite, fazendo-se acompanhar da empresa de segurança privada LB. Esta segunda-feira, por volta das 5h30 da manhã,  arrombando as portas e
sem apresentarem qualquer mandado ou notificação do tribunal, tentaram despejar as 13 pessoas que se encontravam no edifício.

Os voluntários da Seara, alertados pelas pessoas que pernoitavam no local, chegaram por voltas das 6. Perceberam que os seguranças da empresa estavam armados, numa situação que a voluntária considera completamente ilegal.

Perante uma alegada situação de violência, em que a voluntária refere que uma pessoa ficou ferida, as pessoas que estavam dentro do edifício chamaram a polícia. Num primeiro momento, os agentes terão impedido o despejo e a retirada dos bens das pessoas de dentro do edifício.

No momento em que a A Voz do Operário esteve presente no local, a polícia encontrava-se já a fazer um cordão de segurança à porta do edifício, não deixando ninguém entrar. Segundo o relato de testemunhas, encontravam-se no interior do edifício ainda 3 utentes da Seara, que Catarina Duarte diz estarem a ser vítimas de tentativa de suborno por parte da advogada, também presente, juntamente com os seguranças.

“Nós temos um propósito aqui no espaço que é solidário.” , alega a voluntária.

Questionada sobre um possível desfecho da situação, Catarina Duarte afirma que tentarão resistir ao máximo. “Nós temos um propósito aqui no espaço que é solidário e também queremos chamar a atenção para a especulação imobiliária que está a contecer em Lisboa. Há pessoas que estão a vir aqui que têm casa, mas como todo o dinheiro que recebem vai para a casa, vêm buscar comida a cantinas solidárias. Isto é um problema da cidade e do Estado que não têm uma solução de habitação social para as pessoas, nem de alojamento para sem-abrigo, que aumentaram exponencialmente nos últimos meses com o Covid e com a crise económica que está a acontecer”, refere.

Quando o centro foi instalado, a organização enviou um e-mail, entre outras entidades, para a Câmara Municipal de Lisboa e a PSP, alertando que se iria “apropriar do espaço de forma pacífica”. Até à data, não obtiveram qualquer reação a esta informação.

Catarina Duarte, pessoalmente, considera que as respostas levadas a cabo pela CML neste contexto são insuficientes, havendo muitas pessoas que não estão a conseguir sítio para morar e para comer, referindo ainda a falta de trabalho e sustento mínimo.

Por fim, Catarina Duarte refere que “as próprias pessoas utentes do espaço estão a participar nos turnos da casa, na assembleia [de gestão do espaço]. As pessoas também estão a participar neste processo e por isso também hoje estão aqui a reivindicar o direito de ter uma casa e o direito de ter comida. Estão aqui connosco porque também estiveram connosco desde o início do processo.”

Abrir portas a quem está na rua

Álvaro, de 50 anos, explica que, desde o primeiro dia, usufrui dos serviços disponibilizados pela Seara, tendo chegado através de uma das cantinas solidárias. Refere que aqui consegue acesso a roupas, mas destaca o calor humano. “Todos aqui nos tratam com humanidade, respeito, todos os voluntários são extremamente calorosos”. 


Álvaro e Lucas, utentes da Seara

Lucas, de 25 anos, está em Portugal há 11 meses e relata que quando chegou não enfrentou dificuldades: arranjou trabalho como ladrilhador. Com a crise pandémica, perdeu o trabalho e todas as portas se fecharam. Não teve mais dinheiro para pagar o hostel onde vivia, e viu-se, de um dia para o outro, na rua. Na Seara, passou a poder “tomar banho, fazer refeições sentado numa mesa, coisas que quem mora na rua não consegue.”. Sobre a importância deste espaço reforça que “a Seara estava chamando a atenção de muita gente, ajudando psicologicamente, na situação de quem está na rua, dando roupa, sapatos, respondendo a necessidades concretas, o que não acontecia em muitos lugares e aqui está acontecendo”.

Álvaro conta que com a chegada da pandemia, muitas instituições que prestavam apoio a pessoas em situação carenciada fecharam. Essas pessoas encontraram a porta aberta da Seara. Da organização, destaca a segurança e higiene. “Os voluntários foram os primeiros a seguir as normas. Sem máscara ninguém entra ali dentro, é obrigatório limpar as mãos com álcool”. E remata: “Isto aqui foi uma grande covardia”.

Durante a tarde, a polícia de intervenção acabou por avançar sobre os presentes, quando um grupo de voluntários tentou aceder ao interior do edifício.

Os despejos estão suspensos, em virtude de um pacote de medidas excepcionais e temporárias de resposta à crise pandémica aprovado pelo governo.

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