Como se conta uma história a que, com mais ou menos verosimilhança, estamos ligados? Como ir à memória, colar esparsos fragmentos de uma verdade que está, ela própria, polvilhada de invenções, de sombras, de pormenores que não colam com a vida real, que fazem parte de um certo mito criado em torno de personagens singulares que povoam o nosso espaço familiar e as suas estranhas formas de vida? Onde estão os limites da verdade e da ficção?
O certo é que esta narrativa, plena de incidências e de um humor de boa fibra, Emídio e Ermelinda, de Sandro William Junqueira, em torno do avô Emídio Pirulito, um valdevinos talentoso, um artista, um permanente trânsfuga, um homem que tinha, diz Ermelinda, esposa do ilusionista, o diabo na picha. E esse diabo é que lhe há-de traçar o caminho aventureiro, refinará o talento para o desenrascanço, o levará ao circo, à Rodésia, a Angola, a Moçambique, a trapalhadas funestas com diamantes falsos e ligações a quadros falsificados (até um Picasso), a empreendedorismo no ramo das cerâmicas, que o Emídio era homem de talentos, não só a saltar fronteiras e quartos de damas sôfregas, mas possuía mãos capazes de moldar o barro em obras de merecimento.
Verdade ou ficção, toda a arte literária vive da memória, da invenção e seus prodígios encantatórios e do talento do escriva para nos levar à certa, este livro de Sandro William Junqueira, que já foi peça de teatro, conduz-nos a um universo fantástico de amores desavindos, mas capazes de ultrapassar todas as convenções e perigos, num tempo e num país tolhido pela vigilância sistémica e pelo respeitinho dogmático.
Ermelinda, transgride todas as normas em busca do seu homem e do diabo que nele habita. Ele em fuga e ela, por países que nem a língua entende, em busca dele. E lá está o contumaz, numa boa. E ela a tentar salvá-lo do seu próprio destino, e o seu Pirulito em fuga permanente, agora em Moçambique, lá para os confins, ela no rasto do malandro, um Errol Flynn decadente que se assemelhava mais a um chefe de cartel de droga sul-americano. Até que Ermelinda se cansou de o procurar, o amor também se cansa, e esta aventura, magnificamente urdida e contada em toada pícara por um autor que encontrou o tempo e a linguagem certeira para no-la dizer, como se de uma íntima conversa se tratasse, termina com estas duas almas separadas e ao som de Tudo Passará, pela voz do cantor romântico Nelson Ned.
Autoficção? Ficção apenas? O certo é que este livro se lê de um fôlego e algo de novo – a linguagem, o estilo – nele respira, que nos surpreende e seduz.