O episódio da eleição do Presidente da Assembleia da República foi sintomático do que serão os próximos tempos, com um Parlamento fragmentado à direita, em que, com o apoio do PS, foi encontrada uma solução que é, na prática, a proposta pelo PSD, com a qual o PS não concordou. Vejamos: Aguiar Branco é Presidente da Assembleia da República e a extrema-direita garante o seu lugar de vice, com a eleição de um ideólogo pós-salazarista que esteve envolvido numa organização terrorista de extrema-direita. Fica a possibilidade de, daqui a dois anos, Aguiar Branco ceder o seu lugar a alguém do PS. Fica a possibilidade, ainda mais real, de tal não acontecer, porque há sérios riscos de a atual legislatura não chegar a meio. O que também está bem evidente a partir deste episódio é que, de uma forma ou de outra, a “direita democrática”, que se pressupõe serem o eixo PSD, CDS e IL, como lhe chama Rui Tavares, manterá as portas abertas à extrema-direita. O não é não é capaz de ser uma espécie de não é não, mas nem sempre.
Neoliberais à espreita
O anúncio do novo governo deixa evidente o pendor neoliberal do atual PSD, ainda que sem a entrada direta da IL no executivo. No entanto, é do seu instituto +Liberdade que sai uma parte importante dos novos ministros, permitindo antever uma influência acentuada dos órfãos de Thatcher nas políticas que tentarão levar a cabo. Sobra um lugar de ministro para o CDS, após a fulgurante eleição de dois deputados. Nuno Melo, que teve direito a transmissão em diretos nos canais de televisão do aparafusar uma placa na porta do gabinete dos centristas no parlamento, ficará com a Defesa, no que terá ido visto com muito agrado por parte das empresas de submarinos por esse mundo fora. Já para o PPM, o que falta da AD, bem, para o PPM fica o ministério do ridículo.
O CR7 dos governos
Ouvindo o balanço feito pela generalidade dos comentadores, temos um governo que é o melhor do mundo, com os mais competentes, capazes e, quem sabe, cheios de superpoderes. Começando em Marques Mendes e Paulo Portas, nas suas homilias dominicais, apresentam-nos as suas análises imparciais e desinteressadas, não tivessem estes comentadores feito campanha pela AD. Sobram, depois, Bernardo Ferrão, José Manuel Fernandes, Helena Garrido, José Gomes Ferreira, Miguel Júdice, que até conhece bem Pacheco de Amorim, o senhor vice da AR, todos extremamente imparciais e independentes nas suas análises. Uma palavra para Sebastião Bugalho, o jovem mais velho de que me recordo em muitos anos – só comparável a Lemos Esteves, entretanto caído em desgraça – que enche as bochechas para, com ar grave e sério, falar sobre política como se estivesse num programa de televisão dos EUA em 1954.
Inverno ocidental e primavera dos explorados
Para além do frio e chuva que se fazem sentir por estes dias, há um quadro geral de retrocessos civilizacionais no “mundo ocidental”. Um pouco por toda a Europa, a extrema-direita avança e ganha terreno em relação aos defensores da social democracia, os crentes na humanização do capitalismo, de que é possível regular a ganância e o egoísmo. França e Polónia, particularmente mas não só, agitam o fantasma de uma guerra à escala europeia, ansiosos por mandarem os filhos dos outros para a frente de batalha com a Rússia.
Em sentido contrário, o resto do mundo move-se. Os BRICS expandem-se, a África do Sul toma a dianteira na denúncia do genocídio israelita na Palestina; Níger, Mali e Burkina Faso procuram assumir os destinos dos seus Estados sem interferências do colonialismo francês e, no Senegal, segue-se o mesmo caminho. Mais a oriente, o Iémen, destroçado por uma guerra civil com quase dez anos, enfrenta o império em solidariedade com o povo da Palestina.
Organizar, resistir e avançar
Tudo indica que os desafios que temos pela frente serão dos mais duros e exigentes desde 1974. A ofensiva ideológica em curso, a constante reescrita da História por parte de quem tem acesso ao espaço de discussão mediático, as mentiras disseminadas como verdades absolutas, sem qualquer contraditório por parte de alguns jornalistas, o recrudescimento de teorias racistas em horário nobre e, por conseguinte, a normalização destes discursos, obrigarão a trabalhops redobrados por parte daqueles que defendem a democracia e a transformação da sociedade. Haja organização, coragem e, acima de tudo, a certeza de que estamos a viver no tempo do passo atrás e é a nós que cabe dar dois em frente.