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As máquinas de fazer IA

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Na década de 90 do século passado, Garry Kasparov ficou sempre convencido que existia algo humano por trás do Deep Blue. Nos nossos dias, avanços significativos na implementação de algoritmos de inteligência artificial (IA), são difundidos em campanhas milionárias que gritam a supremacia da máquina sobre o ser humano. A necessidade de intervenção humana fica, uma vez mais, envolta num nevoeiro de suposições de que estes algoritmos, deus ex machina, são autónomos e aprendem continuamente usando toda a informação no éter.

Podemos categorizar os algoritmos em determinísticos e não determinísticos. Os primeiros são compostos por uma sequência de rotinas executadas de forma exclusivamente dependente das entradas e a que corresponde uma única saída. Os algoritmos não determinísticos consistem em algoritmos com capacidade de se adaptar à entrada, estando as rotinas executadas dependentes da entrada actual e de anteriores.

Estes algoritmos são capazes de mimetizar processos de aprendizagem, i. e., a saída dos mesmos evolui à medida que estes “aprendem” com as entradas e, claro, com uma categorização e referências de locus externo. Uma saída deste sistema, correspondente a uma determinada entrada, será a mesma contida nos dados de treino com maior correlação com a nova entrada, i. e., o algoritmo procura no seu treino qual a situação mais parecida com a situação nova para escolher uma saída.

O processo de treino destes algoritmos é exigente e longe de independente da intervenção humana.

Ao contrário do que tem sido sugerido pelas empresas que exploram estes autómatos, quando indicam que os mesmos aprendem sozinhos explorando livremente dados disponíveis na internet ou noutro acervo idêntico, o processo de treino destes algoritmos é exigente e longe de independente da intervenção humana. Enormes conjuntos de dados são necessário para se treinar os algoritmos e nenhum surge ou existe de uma forma “natural”. Suponhamos um algoritmo adaptativo de análise de imagens e a necessidade de o treinar para reconhecer leões. Semelhante adaptação – aprendizagem – exige milhares de imagens de leões (conjunto de treino). Com as imagens vêm associados vários dados que categorizam a mesma, como onde se encontra o leão, o ângulo de exposição, a escala, etc.

Os GML usam rotinas que sugerem as palavras mais prováveis de serem associadas às palavras que são introduzidas como entrada do algoritmo. A ferramenta, no entanto, não possui conhecimento, mesmo parecendo que dispõe a informação como se o tivesse. Um exemplo disso são as várias respostas distintas quando a mesma pergunta é feita de forma diferente. Isto acontece porque a mesma pergunta articulada com diferentes formulações vai excitar diferentes troços do modelo, que podem ter sido treinados com dados diferentes e, até, contraditórios.

As cadeias de produção envolvidas são de enorme complexidade e encobrimentos programados. Geralmente, destacam-se os projectistas dos algoritmos, compondo equipas de vasta constituição, onde encontramos trabalhadores ligados às áreas da computação, matemática, linguística, eletrónica, etc. As maquinas que os suportam, unidades de processamento e memória dependentes da, já em si, vastíssima cadeia de produção massiva de semiconductores, que se estende desde a mineração de terras raras até à fabricação, atravessando várias geografias e legislações.

Estas micro-tarefas são, essencialmente, feitas por trabalhadores em sítios onde o nível de pobreza é elevado, garantindo a disponibilidade humana para executar trabalho conforme a necessidade do mercado.

Mais escondidos estão os milhões de trabalhadores envolvidos no treinamento destes algoritmos, através da criação e correcção dos acervos de treino. Confirmação de interpretação de linguagem, correcção de transcrições, análise de imagens e fotografias, verificação da relação entre conteúdos, entre muitas outras actividades, constituem milhões de horas de trabalho que são divididas em micro-tarefas distribuídas por milhões de trabalhadores não pagos ou pagos abaixo de qualquer definição de dignidade. Estas micro-tarefas são, essencialmente, feitas por trabalhadores em sítios onde o nível de pobreza é elevado, garantindo a disponibilidade humana para executar trabalho conforme a necessidade do mercado. Num dia, podem-se realizar centenas de micro-tarefas que ocupam, apenas, uma hora de trabalho, uma vez que tudo é contabilizado ao segundo, e, em troca de quase nada.

A indústria de IA assenta em milhões de trabalhadores em condições de elevada exploração, sem qualquer regulação laboral e pressiona o agravamento de formas de exploração desumana, como o trabalho infantil. É mais um lobby, de pressão política, para a permanente desestabilização política e económica de nações inteiras.

Observa-se, essencialmente, que a utilização destas ferramentas constitui uma nova arma de pressão sobre o valor do trabalho, com alegações, pouco ou nada subtis, de que as ferramentas de IA criam uma “deflacção de trabalho”, sugerindo continuamente a substituição de trabalhadores por algoritmos. Na realidade, a maioria da produção está muito aquém do necessário. Tal não se deve à existência de problemas com as ferramentas, mas para haver qualidade é necessário alguém que as controle e verifique que a entrada e a saída do algoritmo sejam adequadas e traduzidas no aumento de produtividade esperado pela inovação da técnica. Recentemente, algumas editoras fizeram testes de traduções de obras inteiras com resultados desastrosos, verificando-se que a correcção do texto necessitaria de igual número de horas que o trabalho humano. A capacidade de relacionar algumas palavras com os seus modelos de correlação é insuficiente para obter o nexo integral de uma obra literária inteira.

O trabalho de valor para pessoas será aquele que é feito por pessoas, constituindo-se o trabalho da máquina como uma mimetização estéril do valor humano da criação. Esta distinção é forte e será reproduzida amplamente, criando ferramentas que agudizarão a desigualdade e a clivagem de classe.

Fora do domínio artístico, o paradigma mantém-se. O trabalho de valor para pessoas será aquele que é feito por pessoas, constituindo-se o trabalho da máquina como uma mimetização estéril do valor humano da criação. Esta distinção é forte e será reproduzida amplamente, criando ferramentas que agudizarão a desigualdade e a clivagem de classe. A produção em massa de conteúdos intelectuais será cada vez mais feita por algoritmos IA e a sua versão de qualidade será produzida por uma elite e para as elites. Imagine-se escolas com máquinas a ensinar alunos enquanto as elites frequentam aulas, em escolas, com professores. A produção em massa orientada por um critério editorial e automaticamente enformada com dados pessoais cria também a possibilidade de difundir mensagens individualizadas de forma muito eficaz, com utilizações tão amplas em publicidade como em campanhas de (des)informação. A situação fica ainda mais interessante percebendo-se a preocupação dos gigantes tecnológicos em fazer este controlo da informação falsa produzida em larga escala com estas ferramentas, cartelizando um ideal de censura para a retirada de todos os conteúdos que não correspondam a critérios de verdade estabelecidos pelos mesmos. Fica assim fechado o ciclo, onde criadores e criaturas são autogeridos segundo critérios próprios.

Ponderar e discutir os méritos destas novas ferramentas e as suas utilizações mais ou menos úteis, nem sequer entrando na confusa argumentação sobre a singularidade e a eventual extinção da humanidade, implica assumir, desde já, que a detenção dos algoritmos por um capital com planos bem definidos, funcionará, maioritariamente, em prol da acumulação. A IA não será só boa para produzir, mas ainda melhor para controlar massivamente. A deflacção do trabalho é isso mesmo, garantir que recursos, antes demasiado onerosos, sejam despendidos em vigilância de massas e na aglomeração e interpretação de ainda mais dados sobre as pessoas, utilizadores ou não das ferramentas IA. As mesmas não parecem, também, prometer uma nova era para a melhor distribuição da riqueza produzida, pelo que, urgem opções políticas que garantam aquilo que o avanço da técnica teima em não melhorar.

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