Trabalho

COVID-19

Pandemia é pretexto para abusos laborais

Despedimentos, imposição de férias durante a quarentena, redução de salários, layoffs, falta de proteção sanitária nos locais de trabalho e não pagamento de subsídio de alimentação são algumas das consequências de uma epidemia levada a cabo por inúmeras empresas durante esta crise gerada pelo novo coronavírus. Se são inúmeros os apelos à solidariedade e à união para enfrentar as atuais circunstâncias, essa não parece ser a intenção de inúmeros grupos económicos e financeiros que apesar dos ganhos dos últimos anos optam por cortar naqueles que no dia a dia são essenciais para o funcionamento da economia. Em período de pandemia, também muitas empresas decidem pôr o lucro à frente da saúde dos trabalhadores, potenciando a infecção dos seus funcionários.

“Já ouviram falar daquele tipo que caiu de um arranha-céus? À medida que ia passando por cada andar, repetia para se tranquilizar: ‘até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. O importante não é a queda mas como se aterra’”. Quem viu a entrada de Ódio, o icónico filme de Mathieu Kassovitz, durante a década de 90, pode ilustrar com estas palavras a forma como as autoridades portuguesas e europeias olharam para a avalanche epidémica que começou na China, sem lhe dar grande importância. Praticamente dois meses depois de a ministra da Agricultura ter dito que o coronavírus podia ter “consequências bastante positivas” para as exportações portuguesas no setor agroalimentar”, a CGTP-IN denuncia uma verdadeira hecatombe laboral e exige da parte do governo medidas para parar a onda de abusos.

António Costa não quis proibir os despedimentos, apesar de serem já vários os países onde esta medida foi implementada. Os governos de Itália e Espanha, com um elevado número de mortos, foram os primeiros. A Venezuela tomou a mesma decisão e até o Papa Francisco condenou a vaga de despedimentos.

Despedimentos em Viana do Castelo

Ainda antes da declaração do estado de emergência por parte do Presidente da República, depois de aprovado na Assembleia da República, com o apelo do governo ao isolamento e ao teletrabalho, foram muitas as empresas que aproveitaram o momento para despedir. Foi o caso da Fnac, em Viana do Castelo, que decidiu cortar o vínculo contratual com três trabalhadores. Dias depois, despediu mais três dos seus funcionários.

É o caso de Joana Lemos (nome fictício) que denunciou à A Voz do Operário que estava com um contrato por tempo indeterminado, com período experimental de 180 dias. Com 32 anos de idade, nunca tinha tido qualquer problema com a empresa francesa. “No dia 13 de março, foram dispensados três trabalhadores, um em regime de full time e dois e part time, com a justificação da quebra de vendas, devido à pandemia do Covid-19”, descreve. Contudo, fomos convidados a trabalhar até ao dia 10 de abril na loja, sem condições de segurança, cumprindo assim os 180 dias do período experimental. Nesse mesmo dia, de acordo com Joana Lemos, alguns colegas dos seus colegas com vínculo efetivos “foram convidados a antecipar férias e a usar o banco de horas que tinham disponível”.

Ainda neste setor, esta trabalhadora explicou que há mais gente neste centro comercial a sofrer diversos tipos de abuso e sublinhou que, apesar de haver uma circular a recomendar a redução do horário de abertura das lojas, a Fnac foi das poucas que não alterou o período de funcionamento. “No mesmo dia em que anunciaram que íamos ser despedidos e em que éramos praticamente a única loja aberta no centro comercial, no final do dia foi-nos enviado um e-mail intitulado ‘vencer o desafio coronavírus’, em que nos era pedido uma atitude positiva e responsável, ânimo e força para juntos ultrapassarmos esta fase”, recordou. “Este aproveitamento num momento de catástrofe social por parte das grandes empresas é sujo e altamente vergonhoso”.

Na formação inicial, contou Joana Lemos, assistiram a uma breve apresentação da empresa na qual se referiram “com orgulho” os milhões de lucro. “Agora, despedem seis das pessoas que ouviram essas mesmas palavras com o pretexto da redução do consumo dos produtos vendidos face à crise pandémica com a ideia que não há outro remédio. É revoltante sentir na pele que somos números nesses milhões, a somar ou a retirar conforme lhes convenha. A FNAC vende a ideia de que trata e vê os seus trabalhadores de forma diferente das grandes empresas concorrentes, o que não corresponde, como visto, de todo, à realidade”.

Também este shopping de Viana do Castelo aderiu à onda de protestos que percorreu vários centro comerciais em todo o país contra a falta de condições de segurança. “Na Fnac, apenas foram colocados dois frascos de desinfetante na área social dos trabalhadores, bem como uma caixa de luvas. Contudo, quando uma colega decidiu colocar luvas durante o período de trabalho foi interpelada por uma superior que lhe chamou a atenção para o mau aspeto que fazia transparecer o seu uso. Dias depois foram colocados cartazes informativos na loja acerca da distância de segurança que muitas das vezes não foi cumprida por parte dos clientes, deixando-nos numa posição de total impotência e desconforto”.

Falta de material de proteção

Mas são inúmeros os casos em todo o país de empresas que priorizam a produção ainda que isso ponha em risco a saúde dos seus trabalhadores. É o caso, por exemplo, da Embraer, em Évora, que até ao fecho desta edição se mantinha a laborar sem precaver as recomendações da Direção Geral da Saúde. À Voz do Operário, um dos trabalhadores, que escolheu falar sob anonimato, denunciou que se mantêm as funções que não podem ser realizadas sem máscara. Nos dois complexos fabris de compósitos e metálicos, continuam a trabalhar cerca de 300 operários, menos os que têm filhos em casa, e este trabalhador defende que se a Embraer não quer parar a produção, “devia pelo menos meter a fábrica a 50%”. De acordo com este operário, o ambiente é de “medo”, “indignação” e há um grande “sentimento de injustiça”.

Contudo, é no setor da saúde que mais choca a falta de material individual de proteção. Na linha da frente do combate ao Covid-19, os profissionais debatem-se muitas vezes com as chefias. Foi o caso de vários assistentes operacionais do serviço de radiologia do Hospital Santa Maria que se recusaram a trabalhar como forma de protesto. De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais do Sul, só quando chegaram máscaras e luvas é que estes trabalhadores aceitaram cumprir as suas funções.

Depois da declaração do estado de emergência, aprovada pela Asssembleia da República, com os votos favoráveis do PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN e Chega, que abre a porta à suspensão do direito à greve, a indignação subiu de tom também entre os auxiliares de alimentação do Hospital de São Francisco Xavier também sem luvas e máscaras.

A Voz do Operário sabe ainda que no Hospital de Santa Maria várias chefias tentaram que os seus trabalhadores que estão em recolhimento domiciliário com filhos menores aceitassem este período de tempo como folgas e férias.

Por outro lado, é cada vez maior o número de lares com utentes e funcionários infetados. Num período inicial sem qualquer fiscalização, e muitas vezes sem materiais de proteção, a pandemia já cobrou várias mortes em diferentes zonas do país.

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