Sendo nós um produto do contexto em que vivemos, o que acha que o influenciou mais no seu trabalho enquanto arquiteto?
Diplomei-me na Escola de Belas-Artes do Porto, sem grande vontade de ser arquiteto. Preferia ser escultor mas, enfim, aconteceu ser arquiteto numa altura em que houve uma grande renovação na Escola de Belas-Artes do Porto porque entrou um diretor – uma pessoa extraordinária –, o Mestre Carlos Ramos, que tinha sido recusado pela escola de Lisboa, felizmente para nós, e que teve uma influência enorme na evolução da escola do Porto porque o professorado estava quase por inteiro na hora da reforma e, assim, ele pode escolher uma nova equipa.
Escolheu gente nova, gente que lutava pela modernidade porque não havia, nessa altura, restrições de concurso. Ele escolheu e escolheu muito bem. Isso era possível na escola do Porto porque estava distante, na periferia. A Escola de Lisboa era mais difícil porque estava demasiado próxima do poder e, portanto, entre as duas escolas não havia praticamente relação. Só mais tarde, e tem a ver com a relativa e forçada e não agradável para o regime, a abertura que houve depois do fim da guerra mundial. Entre as coisas que organizou a Escola de Belas-Artes do Porto, já em associação com a de Lisboa, esteve o inquérito da arquitetura portuguesa que era um documento que recolhia o património no Portugal rural, mas também um registo das condições de vida no interior. Houve equipas de arquitetos, do sul e do norte, que correram o território todo, geralmente de lambreta, porque as estradas eram muito más. Fizeram uma recolha muito completa, financiada pelo regime, com a ideia de que se ia fazer a apologia da arquitetura nacional, mas o que acontecia era precisamente o contrário. No fundo, aquele registo é a prova de que não existe, pura e simplesmente, uma arquitetura nacional, há diversidade de norte a sul e, portanto, apresenta essa visão não nacionalista do que era a arquitetura portuguesa.
Isso teve grande impacto?
Teve. Até porque eu entrei, como dizia, sem grande interesse na arquitetura, ou mesmo sem nenhum interesse, olhava mas não via. Aquela nova equipa que encontrei estava a fazer uma renovação, muito estimulante, muito entusiasmante, na escola, no fundo, fez-me continuar com a arquitetura. E a coisa é tal que eu provavelmente sem essa experiência, para mim inesperada, não seria arquiteto.
Olhando para trás, quais é que diria que são as diferenças entre ser arquiteto então e ser arquiteto hoje?
Era diferente. Quer dizer, nessa altura, era uma imposição, um controlo do que se fazia no sentido de uma arquitetura nacionalista, como defendia o regime, com um porta-voz, um grande arquiteto mas que optou por essa via, até por influências estrangeiras, que estudou na Alemanha, que era o Raúl Lino, e que fez como que uma bíblia do que deveria ser a arquitetura portuguesa. Embora diferente dessa ideia unitária de nacionalismo porque ele quando publica o “Casa Portuguesa”, com uns modelos do Minho, do Douro, do Alentejo, etc., não tem essa ideia de unidade de estilo. A dificuldade era, num momento em que havia uma abertura e, portanto, em que mais firmes eram os desejos de um tipo da minha idade e logo de modernidade, isso era combatido. Quem quisesse ir por esses caminhos tinha dificuldades, ou melhor, não tinha pelo menos trabalho público. Era essa a dificuldade. E, evidentemente, no ensino, que é um tema que diz muito à Voz do Operário, havia grandes limitações. Eu lembro-me, por exemplo, que a escola não tinha biblioteca. Esta nova geração traz uma grande abertura ao ambiente da escola. Enfim, a atmosfera na escola mudou completamente, então depois dessa realização do inquérito à arquitetura portuguesa houve o início de contactos internacionais. Ou o reinício porque tinha havido antes, no tempo anterior ao regime.
Celebramos este ano os 50 anos da revolução. Como foi trabalhar nesse tempo?
Bom, isso foi uma lufada de ar fresco. Depois do 25 de Abril, criou-se um departamento chamado SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local. Isso foi criado quando era secretário de Estado o arquiteto Nuno Portas e havia a organização de brigadas, com um arquiteto diplomado responsável, onde trabalhavam muitos estudantes, os jovens em formação na altura. E entre as bases dessa atividade havia, evidentemente, a referência a experiências no estrangeiro, sobretudo na América do Sul. Ainda outra das ideias bases, era a participação como uma preocupação que percorria toda a Europa. Havia um ambiente favorável para isso, para a participação. E previa a formação de associações de moradores e a formação de brigadas técnicas que, em diálogo com os representantes dessas populações, elaboravam, debatiam os seus projetos, e foi uma experiência extraordinária, em que para mim se provou que o diálogo é favorável à qualidade da arquitetura.
Durante o processo revolucionário, houve grandes contradições.
Houve uma grande resistência a este programa por parte da direita. Evidentemente, que cuidava dos aspetos que estavam a ser postos em dificuldade, como era, por exemplo, o terreno, o território a ser utilizado para habitação dessas comunidades. Quando já havia, nalguns casos, projetos para realizações especulativas imobiliárias. Portanto, criou-se um choque entre interesses opostos e diferentes. E foi isso que, com os caminhos da política em Portugal, levou ao cancelamento do projeto SAAL.
Hoje fala-se muito da crise da habitação. As cidades hoje estão menos pensadas em função das pessoas?
Tem que se avaliar de que pessoas porque “as pessoas” é muito vago. É sempre pensado para pessoas, agora que pessoas é outro termo. E de novo, outra vez, não é também um problema português, é um problema europeu. Não se fala em habitação social. Se reparar, o desenvolvimento do que chamamos arquitetura moderna – se calhar vamos chamar até há três séculos – caracterizou-se, quer dizer, o seu desenvolvimento pelo propósito de responder a toda a gente, às necessidades de toda a gente. Já não era só a casa para os ricos, a cidade pensada prioritariamente para o conforto das famílias com capacidade económica, mas para todos. As grandes obras, as obras celebradas dos anos 20 e 30 referem-se a habitação social, na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, em França, em Itália também e também em Portugal aconteceu isso, anos 20/30. Marques da Silva, o grande arquiteto do Porto do século XIX fez pelo menos dois conjuntos de habitação operária no Porto, através de cooperativas, mais tarde. Isso hoje está em crise, não é? Não se ouve falar. Ouve-se falar do lado da falta, a carência na habitação social, mas realmente a habitação é um problema europeu, pelo menos europeu.
Outro dos problemas que enfrentamos hoje é o da concentração populacional nas grandes cidades como nunca noutros períodos da história. Que consequências pode isto ter no futuro para o desenvolvimento do território?
Já se vêem os efeitos disso, desde os maiores até outros. Há uma coisa que é a desertificação do interior. Portugal, que já é um país pequeno, tem uma faixa muito densa e o resto pouco denso. Embora estejam em curso esforços no sentido de ultrapassar essa situação, isso leva tempo. Naturalmente que, sem dúvida, leva tempo, seja qual for a vontade. Isso traz outras consequências para a agricultura, com o abandono de mão-de-obra, etc, com os fogos. Ora, esse é um campo de ação prioritário, conseguir que o território seja todo utilizado.
Quais são os grandes desafios para a arquitetura?
Os grandes desafios para a arquitetura são ultrapassar esta situação em que predomina a lógica dos resultados, das votações, dos estudos na comunidade europeia. A última decisão de Portugal foi a de que a obra pública é obrigatoriamente feita por concurso. De acordo. Mas é um concurso entre empreiteiros, não é entre arquitetos. Isto mostra a que ponto há um descrédito, uma distorção do papel do arquiteto neste campo.
Quando olhamos para as cidades, percebemos a importância do tecido associativo, das coletividades. E cada vez vemos menos coletividades, muitas delas a fechar, muitas vezes até por causa do problema da habitação, de facto. Como olha para o movimento associativo?
É fundamental, mas encontra dificuldades. Há o exemplo d’A Voz do Operário que tem resistido à situação. Há quantos anos? Não só no passado, as dificuldades que teve para se manter e a forma como se manteve, como atualmente também terá. Mas tem essa força da história, não é?
Vai ser homenageado este ano pel’A Voz do Operário. O que significa para si esta homenagem?
É uma grande honra e pergunto-me se a mereço, mas é uma grande honra e sensibilizou-me muito. Espero que dure pelo menos mais outros 141 anos e se aguente porque continua a ser uma voz a ouvir, e que se ouve.