Entrevista

Futebol

Francisco Geraldes. A financeirização do futebol põe em causa a essência do jogo

Cresceu numa família economicamente estável e estudou em “bons” colégios. Foi o futebol que o pôs em contacto com as desigualdades sociais. Não esquece o colega que passava fome e a partir daí começou a ganhar consciência política. Formado no Sporting, o jogador passou, para além de Alvalade, por vários clubes do primeiro escalão. Agora joga nos Emirados Árabes Unidos. Tem um livro publicado e está a ler os discursos de Salvador Allende. Anti-imperialista como Sócrates e Maradona, Francisco Geraldes aprendeu que o futebol pode ser uma ferramenta política.

Passou por clubes, entre outros, como o Sporting, Rio Ave, Estoril e agora o Baniyas. Como é que chega ao futebol?

O meu colégio tinha uma espécie de equipa que participava em alguns torneios de fim de semana ou de verão. Lembro-me que a primeira vez que tive um torneio foi no Colégio São João de Brito, onde jogámos contra o Sporting, Benfica e por aí. Acho que ficou sinalizado eu ir treinar ao clube e, entretanto, as coisas acabaram por não acontecer. Eu também treinava numas escolinhas só como desporto ali na Cidade Universitária, em que um dos treinadores era próximo de outro treinador do Sporting, o mister Tiago Capaz e o mister Hugo Cruz. Fui fazer um treino ao Sporting e fiquei. A partir daí – tinha oito anos ou sete, já nem me lembro – nunca mais saí do Sporting até aos 23 ou 24 quando fui para o Rio Ave. 

Acha difícil gerir as expetativas, sobretudo dos mais jovens, mas também dos pais, quando muitas vezes há a ideia de que o futebol é um investimento de futuro?

Eu acho que isso tem muitas camadas. A minha vida no futebol, se eu pensar desde que comecei, desde os oito, até à fase final de formação, até aos dezoito… Se eu lhe disser que [fui o único que] acabei, que conseguiu profissionalizar-se, dessa minha equipa… Foram entrando outros jogadores ao longo do tempo que também terminaram, mas se eu pensar que, desde que comecei, quem foram os jogadores que me acompanharam, eu não me lembro de ninguém. Obviamente que, lá está novamente, com doze, com treze já há alguns – o Daniel Podence, o próprio João Palhinha que fez outro percurso mas também chegou lá – mas isto para dizer que a malha é muito apertada, a maioria, sei lá, diria que 95% dos miúdos não chegam a patamares, quer profissionais e obviamente que isso terá sempre as suas condicionantes muito particulares, dependendo de caso a caso, mas gerir isso não é de todo uma questão fácil, principalmente porque eu vejo muitos pais que colocam uma pressão muito grande que não condiz com a realidade. Nós vemos no futebol muita dificuldade de gestão nesse sentido porque os pais querem participar muito, metem-se muito nas questões relacionadas com treinadores, das equipas e pronto, no final deposita-se muita esperança numa coisa que estatisticamente, à partida, não vai correr bem sequer.

Pegando nessa questão das expetativas, tem falado muito da importância da saúde mental. É difícil gerir a parte psicológica quando se joga no primeiro escalão do futebol profissional? 

Sim, primeiro porque, obviamente, isto assenta tudo numa questão de competitividade e por muito que as pessoas digam “ok, mas isto é um trabalho de equipa e tal”, mas tu acabas até por competir com os teus colegas de equipa e tentas sempre fazer tudo o que seja possível para estares à frente e seres melhor e treinares mais. Abdicas – posso falar até no meu caso particular, abdiquei de tudo e mais alguma coisa – e depois as coisas se calhar não correm da forma como tu idealizavas, e isso tem um preço a pagar. Umas vezes mais alto do que outras, depende de pessoa para pessoa também, mas tem sempre o seu peso. E se não há esse acompanhamento, que falha muito no futebol, tanto nos clubes grandes como nos clubes mais pequenos principalmente – obviamente porque nem sequer há uma preocupação grande com a existência de psicólogos, ainda é um pouco um tabu, por isso o jogador, o atleta, o miúdo fica sempre deixado a si mesmo, àquilo que pode sentir ou não sentir, e a forma como lida com isso, na maioria das vezes, é prejudicial e não tem ajuda profissional para saber lidar com isso.

Hoje, muitas vezes, mais do que apenas jogadores, alguns futebolistas são também marcas. Têm uma vida empresarial extra-futebol. Isto afecta o próprio jogo?

Isso é verdade a partir do momento em que tudo se mercantiliza, não é? Tudo se vende, tudo se compra. Agora vemos pela questão da Arábia Saudita. Não interessa muito se o jogador é bom ou não, ou se já foi muito bom, se foi menos bom, o que interessa é a história que deixou, aquilo que fez, o seu nome, por isso, nessa perspetiva acaba por ter impacto. Novamente essa questão da mercantilização, se muda o jogo? Sim, obviamente que sim porque, primeiro, os atletas fazem cada vez mais jogos, não estão obviamente com capacidades finitas, do ponto de vista físico. Os melhores jogadores do mundo fazem entre 60 a 70 jogos por época e isso obviamente que tem o seu impacto na performance dos jogadores, até na própria saúde mental dos próprios – para além da física, obviamente – por isso há aqui uma espécie de uma dinâmica diferente a acontecer. O próprio Pedro Proença, o presidente da Liga [de Clubes], falou disso em comentários recentes sobre aquilo que os adeptos procuram hoje, que já não têm paciência para ver um jogo. Por isso toda esta envolvência das coisas terem que ser feitas mais rápido para vender e esta obsolescência programada de que o que foi feito ontem já não vale também serve para o futebol. 

A financeirização do futebol elevou o negócio do desporto a níveis estratosféricos. Recordo a proposta de criação de uma Superliga Europeia para os clubes mais ricos. No caso de Portugal, tem levado a graves problemas em vários clubes através das SAD que os usam apenas enquanto dá lucro. Vê isto como um problema?

Não sei, eu acho que o problema será sempre estrutural. Ou seja, haverá sempre maneira de contornar essa questão porque, como o objetivo é a maximização do lucro… A ferida é tão profunda que será sempre pôr um penso por cima e não corrigir na totalidade. Em Portugal, temos exemplos disso em clubes que abrem, que constituem SAD e depois ninguém sabe quem é o dono, e que de repente desaparece e o clube também desaparece em si. O Aves é um exemplo disso e há muitos. E, obviamente, que essa questão da Superliga Europeia acho que é uma tendência natural, vai acontecer porque, lá está, se o objetivo é vender e maximizar o lucro, as pessoas não vão querer ver jogos – como aquilo de que estávamos a falar ainda há pouco – entre equipas ditas pequenas e criando uma Superliga Europeia as melhores jogam sempre contra as melhores. O público quer é ver isso, por isso acho que é um passo natural, infelizmente. 

Há cada vez mais leis repressivas contra as claques. Acha que é possível um futebol sem adeptos, como se as pessoas fossem a um concerto? Recordo o caso da B-SAD com bancadas vazias.

Ser possível em termos práticos é, agora se desvirtua aquilo que é o jogo pela essência histórica isso é mais do que óbvio. Isso é um bom exemplo porque a B-SAD, lembro-me, tinha, sei lá, 15 adeptos? Deviam ser familiares e amigos. Isso desvirtua muito o jogo. Agora, em relação ao tema dos adeptos, eu acho que os jogadores gostam e apoiam, e para eles é um valor acrescentado ao jogo, por isso nem sequer faz muito sentido que se termine com esta organização dentro das franjas dos adeptos. 

Disse numa entrevista que muito do seu pensamento mais ideológico vinha do futebol. Como aconteceu isso?

Cresci num colégio, só rodeado de gente com muitas possibilidades na sua maioria e, nesse sentido, cresci numa bolha, também com a minha família super estruturada, nunca faltou nada, mas isso era até às quatro da tarde. Depois das quatro da tarde, entrava na outra bolha e isso foi uma coisa que eu agradeço imenso, em termos genéricos, ter tido essa possibilidade porque mostrou-me o que é o mundo real fora daquilo que eu vivia. Criei amigos e cresci com diferentes tipos socioeconómicos. De famílias, de pessoas que passavam mesmo muitas dificuldades. Eu tinha um colega meu que era tão magro porque mal comia quando chegava a casa depois dos treinos. Ele era muito mais novo mas eu lembro-me dessa história porque foi muito impactante. E ter essa realidade fora da bolha de onde eu vivia fez-me, acima de tudo, colocar muitas questões. Perceber como é que as coisas se organizam e o que é que leva as pessoas a passarem tantas dificuldades e a viverem o futebol como uma bóia de salvação para a sua vida. Isto responde também um bocado à sua pergunta inicial e fez-me levar por caminhos completamente opostos àquilo que era a minha forma de ver e gostar do mundo: ‘ok, isto não faz sentido e as desigualdades têm forçosamente que ser corrigidas’. Isso levou-me ao ‘como’. E para isso tenho andado a estudar e a consciencializar-me cada vez mais.

É pouco comum que futebolistas usem a visibilidade mediática para defenderem posições políticas. Recordo Sócrates, Maradona, Cantona. Vejo-o fazê-lo muitas vezes nas redes sociais. Quais são as suas referências políticas no futebol?

Mencionou as duas maiores, o Sócrates e o Maradona. O Sócrates obviamente que é uma lenda no Brasil, uma voz muito ativa contra a ditadura militar no Brasil, com aquele clássico da fita na cabeça, e o Maradona, pronto, pela sua sempre forma de estar irreverente, também com o espírito muito exacerbado anti-imperialista. São influências enormes na minha forma de estar e de também de encarar o desporto como um veículo de consciencialização das massas, acima de tudo. 

Tem havido, ao longo dos anos, alguns casos de racismo, sobretudo das bancadas, contra jogadores em Portugal e noutros países. Sente que é possível unir os atletas em torno de questões concretas? Vocês, no balneário, na vossa vida pessoal, quando saem à noite, conversam sobre estas questões? 

Mais no balneário, às vezes. Aqui ainda não tive essa experiência mas quando estava no Estoril, num passado mais recente, falávamos disso às vezes, sim. Eu lembro-me da questão do Vinícius. Quando também estruturalmente tens o presidente da Liga espanhola a desvalorizar por completo, até com declarações racistas para com o Vinícius, percebemos que o problema é muito maior do que vinte mil adeptos que estão, ou dez ou cinco mil naquele jogo em concreto, em Valência, percebemos que o problema é muito maior que esse, dos próprios adeptos.

Acho que o mais importante era fazer reformas muito mais estruturais e perceber porque é que o racismo é uma coisa tão premente, que é tão banal na nossa sociedade e perceber de onde é que vem e como corrigir. Isso acima de tudo era o melhor caminho a ser feito, e não uma de ‘pronto, os jogadores estão unidos’ mas antes de o que é que estruturalmente te leva a isto? É mais por aí.

Há quem o ataque pelas posições que assume, claramente de esquerda, ao ter decidido jogar para a Arábia, como se fosse uma contradição. Como viu estas críticas?

As críticas quando vêm da direita, nesse sentido, dão-me vontade de rir porque nota-se perfeitamente que nunca abriram um livro sobre socialismo, nunca leram nada. Já sabemos que qualquer coisa que uma pessoa de esquerda faça é uma contradição: ter um telefone, ter uma casa, ter um carro. Uma coisa que é perfeitamente anedótica porque uma pessoa vive dentro do sistema e não se pode afastar dele. Depois, é esta questão do moralismo, não é? Dos países bons e dos países maus. Nem parece que nós fazemos parte de um país que tem imensos sem-abrigo, em que pessoas passam fome. Somos amigos de países como França, Inglaterra, Estados Unidos, que só no Iraque [mataram] 400 mil… Por isso, lá está, esta perspetiva moralista e idealista, que é obviamente oposta àquilo que é o materialismo histórico de Marx, é tornar a discussão muito rasa. No outro dia li que na Arábia Saudita executaram 100 pessoas Se nós pensarmos – e isto não é uma contraposição, ou seja, não é uma defesa da Arábia Saudita, obviamente que isto é sempre condenável – mas se nós pensarmos e olharmos para as estatísticas, em 2022, a polícia americana matou 1777 pessoas. Por isso, o próprio Estado americano mata onze vezes mais do que Arábia Saudita num ano. O próximo mundial será nos Estados Unidos e não vou ver de certeza absoluta ninguém a levantar este tipo de questões da moralidade, direitos humanos, quando falamos de um país que tem a maior percentagem de presos em termos absolutos e em termos relativos do mundo.

Artigos Relacionados