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O operário Ernesto da Silva: socialismo, república e teatro

Foi uma vida breve que terminou naquele dia, 25 de Abril de 1903, nas oficinas da Imprensa Nacional. Ernesto da Silva tinha 35 anos de idade.

Ernesto da Silva

Na Lisboa da época, o seu funeral foi uma manifestação popular considerável. Terá reunido entre seis a sete mil pessoas. Republicanos, socialistas e anarquistas.

Delegações de sindicatos, cooperativas e outras coletividades. A Voz do Operário fez-se representar por “todos os seus corpos gerentes”.

Um dos discursos coube a um futuro fundador do PCP, o então operário corticeiro Sebastião Eugénio, de Almada. Disse ele que a morte de Ernesto representava “uma enorme perda para os que trabalham e seguem os mais avançados ideais”. E apelou a que fosse seguido o seu exemplo de “hombridade, dedicação e energia” [«O Mundo», 27/04/1903, pág. 2].

Sindicalista

Operário tipógrafo e revisor, Ernesto da Silva foi um de vários militantes notáveis que brotaram da Imprensa Nacional.

Dedicou-se à organização do seu setor profissional, no sindicato «Liga das Artes Gráficas». E na «Federação de Associações de Classe» (remota antepassada da atual União de Sindicatos de Lisboa).

Foi ainda um dos fundadores da central sindical «Confederação Nacional das Associações de Classe» (em 1894).

No campo político, foi militante do antigo «Partido Socialista Português», entre 1892 e 1897. E dele chegou a ser um dos principais dirigentes.

Além dos seus artigos na imprensa operária e republicana, salientou-se pelos dotes de orador, em comícios do 1º de Maio e noutras assembleias populares.

Marxismo

Ernesto foi, no seu tempo, um importante propagandista do socialismo em Portugal. E tornou-se um porta-voz do apoio operário à causa republicana.

Não era propriamente um marxista. A sua grande referência teórica era um revolucionário da Comuna de Paris, chamado Benoit Malon.

Ora, marcado pela derrota e repressão que se abateu sobre a Comuna, Malon focou-se na defesa da liberdade e da República. Passou a tratar a revolução social como um horizonte mais longínquo. E, no fundo, expressou uma das revisões reformistas que marcaram a leitura do marxismo nos partidos operários, no final do século XIX.

Por outro lado, Ernesto abraçou a influência do “anarquismo intervencionista”. Uma corrente revolucionária que se empenhou no derrube da monarquia, como via imediata de ação, uma etapa para o progresso da liberdade e posteriores avanços sociais.

Não obstante, Ernesto faz parte da história do marxismo em Portugal, com dois contributos relevantes: traduziu O comunismo e a evolução económica, de Paul Lafargue; e foi um dos responsáveis por uma edição de Socialismo utópico e socialismo científico, de Friedrich Engels.

“Teatro social”

Naquela época, muitos militantes operários cultivaram expressões culturais como a poesia, o fado, e o teatro amador. Fizeram-no com intuitos recreativos e para divulgar ideias de justiça social.

Usando a arte “para apoiar o desenvolvimento da consciência humana e a melhoria do sistema social”, como referia o marxista russo Georgui Plekhanov.

Eram amiúde indivíduos com uma instrução escolar rudimentar. Alguns só se alfabetizaram já em adultos.

Segundo o seu amigo Mayer Garção, a Ernesto da Silva faltava-lhe “educação literária”, mas ele “corajosamente se dedicou a possuí-la. As horas em que descansava, ou do seu trabalho […] ou do movimento associativo, dedicava-as à cultura estética do seu espírito”. E “lia com avidez” [«A Capital», 24/05/1914, pág. 2].

Assim se afirmou como autor de um ‘teatro de intervenção’, ou “teatro social”, como lhe chamava.

«O Capital»

Ernesto lançou-se como dramaturgo em 1895, com a peça O Capital. Na qual aborda condições de trabalho e lutas operárias numa grande fábrica de tecidos.

Teve certo sucesso em Lisboa e no Rio de Janeiro.

Depois, entre outras, estreou no 1º de Maio de 1900 a peça Nova Aurora. Uma história que termina com este brado: “Trabalhadores, erguei a voz potente em hinos de esperança; poetas, trabalhai novos poemas de revolta; pintores, lançai à tela o sofrimento para acordar o povo” A Obra», 06/01/1901, pág. 2].

Sinal do seu prestígio popular na cidade de Lisboa, existiu em Alfama um grupo de teatro amador que escolheu chamar-se «Grupo Dramático Ernesto da Silva».

Em Alcântara houve o «Círio Civil Ernesto da Silva», uma associação excursionista, de cariz anti-clerical.

E, antes da ditadura, foi dado o seu nome a uma rua de Benfica.

A Voz do Operário

Ernesto era sócio d’A Voz do Operário. E várias vezes a sua voz aqui foi escutada.

Discursou, por exemplo, na festa de entrega dos prémios escolares de 1902. Ao lado de figuras como a feminista Angelina Vidal e os republicanos Magalhães Lima e Heliodoro Salgado.

Um evento que teve lugar na Sociedade de Geografia: onde “a vasta sala «Portugal» […] regurgitava de crianças. Por detrás delas, nas galerias, e no salão, ao fundo das coxias, aglomeravam-se os poucos convidados que puderam entrar. Apesar da grande lotação da sala, não cabiam mais”.

Na altura, A Voz do Operário já conseguia proporcionar instrução primária a cerca de 2.600 alunos. E Ernesto enalteceu esse feito como “um monumento erguido pelo proletariado português” [«O Mundo», 27/10/1902, págs. 1-2].

No seio desta coletividade, ele bateu-se pela solução de um problema que só seria plenamente resolvido depois do 25 de Abril: a igualdade de direitos entre sócios.

No tempo dele, só uma minoria – os operários tabaqueiros – é que podiam ser sócios efetivos, com direito de voto e de eleição para os órgãos sociais.

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