“A ‘Cidade Líquida’ é uma cidade onde a cultura e a animação ajudam a derrubar fronteiras e barreiras. É uma cidade onde tudo pode acontecer. É a cidade da irreverência e do desassossego. A cultura expande-se e derrama-se sobre os territórios e a população, dissolvendo preconceitos e lugares-comuns. Toda a gente é convocada para a grande aventura da cidade.” Foi assim que Paulo Cunha e Silva, o então vereador da cultura da CMP que viria a classificar o CCSTOP como um dos “ecossistemas culturais mais interessantes” da cidade, redefiniu o conceito de “cidade líquida”. Mais evidente que a apropriação (e desconstrução) do conceito de Bauman, ficou claramente visível que a cultura seria instrumentalizada enquanto ferramenta de diversão, construção e “expansão” (passe a expressão) do novo desenho e desígnio de cidade-marca que então se começava a esboçar.
Dez anos passados, torna-se bastante curioso que a cidade que se materializou se aproxime cada vez mais do conceito original de Bauman, no qual a cidade líquida representa um novo estágio da modernidade, onde o comunitário e o científico dão lugar ao individual, ao efémero, ao veloz, ao mercantil e a uma espécie de vazio onde nada se consegue agarrar e onde tudo, inevitavelmente nos escapa. É a cidade (e a sociedade) desumana e fria do consumo desenfreado, do espetáculo, volvida produto, tornada marca. Interessante constatar que a vereação da cultura, após a partida inesperada de Paulo Cunha e Silva, tenha sido assumida pelo próprio presidente da Câmara do Porto, quase como um desígnio pessoal e individual, a bandeira e o produto da sua marca, da “sua” cidade líquida. É nesta cidade – a “agora” (mais uma vez, passe a expressão) cidade-cenário de guião que se vai cumprindo, a cidade-montra de produto que se vai vendendo – que se vai varrendo o pó, muitas vezes violenta e abruptamente, da outra velha cidade, da outra cultura, daquela a que ainda pertencem relíquias, cada vez mais raras e valiosas, como o STOP, os seus músicos e as suas criações para o mundo.
O processo do STOP é longo, intrincado e complexo e são inúmeras e inúmeros os atores e protagonistas num espaço que carece, indubitavelmente, de intervenção e medidas, mas sobre o qual recai um fado que se revela cada vez mais incontornável sobre os desígnios de uma cidade progressivamente mais líquida. O STOP está hoje no lugar errado à hora errada. Encontra-se na linha da frente da onda implacável e devastadora da doutrina de choque que é o modus operandi destas novas cidades paulatinamente mais mercantilizadas e que padecem, por ordem das forças, sob uma enorme pressão imobiliária e especulativa. A cidade líquida é feita de autoritarismos disfarçados e os seus músculos, que já não cabem nas próprias fardas, servem para higienizar o território, expulsando, esganando e engasgando em pancada e colisão quem a si ousa resistir. Esta cidade quanto mais espaço ocupa, mais vazia se torna. Na cidade líquida o único “desassossego e aventura” é o da liquidação.
Depois de inúmeras propostas colocadas pela oposição política ao executivo para que, de forma contínua e programada se fosse reconstruindo um espaço que alberga para cima de trezentas trabalhadoras e trabalhadores das artes e da música, depois dos inúmeros serviços prestados por estes a eventos culturais promovidos pelo próprio executivo, a resposta dada é da maior violência imaginável. É, está claro, o culminar de anos de obsoletismo programado, onde uma melodia se foi compondo entre a narrativa de um executivo camarário ultra liberal que se vai mascarando de cosmopolitismo, entre associações que se revelam umas mais líquidas do que outras, entre proprietários anónimos-até-ver e administrações que servem as ondas destas novas marés, para que na coda da música se deixe cair uma bomba com o objetivo claro que desse impacto já quase ninguém se levante. Na receita do choque, do dividir para conquistar, depois do mal feito, quem larga a bomba aparece sempre depois de a atirar e, enquanto o pó não assenta, oferece um tratado de paz, num exercício repleto de “soluções” ou “reflexões”, nada inocente e sempre executado em pele de cordeiro.
É por isso da maior importância que quem está envolvido neste processo, os músicos evidentemente, assim como quem pretende sobreviver aos mecanismos destas novas cidades – outros agentes, resistentes, novas e velhas gerações – se organize, exija e volte a ocupar aquilo que (ainda) é seu. Que haja a consciência da necessidade de agarrar em conjunto a nossa cidade, a nossa cultura e aquilo que é público. Pelo menos empunhar e segurar o que ainda se encontra em estado sólido, para que não nos escape tudo, como um líquido, pelo meio dos dedos das mãos.