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Escolas

Trabalhar a autonomia para construir a liberdade

Numa pequena mesa, duas crianças dialogam, sobretudo com gestos, enquanto almoçam. Uma delas come com as mãos enquanto a outra lhe diz para comer com a colher, dando o exemplo. De seguida, os dois meninos estão a comer com talheres. A meio, uma menina levanta-se da mesa e arruma a sua própria loiça. 

Entrar no espaço educativo d’A Voz do Operário na Baixa da Banheira é um hino à humanidade. O riso das crianças é o compasso desorganizado de uma banda sonora que acompanha uma ideia fundamental: o crescimento livre e autónomo em aprendizagem dialética com a vida. Num espaço sem portas fechadas para as famílias, é Elsa Madeira, coordenadora da creche deste espaço educativo, que nos guia pelo pré-escolar explicando que estas meninas e meninos arrumam, desde pequenos, pratos e talheres com o objetivo, também, de que este trabalho tenha continuidade em casa. Algumas famílias têm receio de que as crianças possam sujar a casa, mas Elsa Madeira sustenta que o objetivo é que aprendam percebendo que são capazes. “É preciso fazer este trabalho com as famílias, dar às crianças a oportunidade de terem o tempo deles, o espaço deles e a oportunidade de, em casa, também fazerem o que fazem aqui na escola”, afirma.

Mas o papel das famílias é fundamental no processo de aprendizagem fora, mas também dentro deste espaço educativo. Nesse aspecto, Elsa reconhece que o envolvimento dos pais ainda não regressou ao nível pré-pandemia. Descreve que dantes “ficavam um bocadinho, participavam nas dinâmicas, vinham contar coisas da vida deles ou mesmo relacionadas com as profissões, trazer conhecimento ao grupo”. Agora há ainda algum receio mas, passo a passo, as famílias estão a reaproximar-se. Revela que é “uma diferença enorme” porque antes sentiam que as famílias entravam no espaço “como se fosse a sua casa”. O “posso entrar?”, explica, é agora um hábito a derrubar. “Claro que sim, abra a porta, entre e fique, o espaço também é seu, costumo dizer-lhes”. 

Finalmente, a heterogeneidade

Estender a heterogeneidade ao espaço educativo da Baixa da Banheira era um objetivo já anunciado e concretiza-se agora, completando um ciclo que liga todo o modelo educativo d’A Voz do Operário, através da diversidade etária em cada grupo de crianças.

“O que nós queremos é que eles estejam juntos e não que alguma sala, até o próprio berçário, esteja isolado, no fundo, de tudo. Por isso, neste momento, só temos duas crianças no berçário, dentro do espaço, porque as outras estão juntas”, descreve Elsa Madeira. “Apesar de termos grupos homogéneos antes, já tínhamos uma grande diferença de idades, já tínhamos crianças quase com um ano e crianças que já estavam a fazer dois ou três em janeiro”, descreve, lembrando que “cada criança tem o seu ritmo”. Considera que foi uma importante decisão pela “experiência que as colegas [de outras escolas] iam partilhando” e por aquilo que queriam exprimentar, uma vez que sempre trabalharam muito em conjunto. “No fundo, nós estamos em sala mas estamos sempre juntas e sempre com trabalhos entre salas, por isso, também já vivíamos diariamente isso, tentávamos sempre, de alguma forma, trazer essa heterogeneidade para dentro da creche, não dentro de salas. Senti que estávamos preparadas e que gostávamos de viver também aquilo que elas partilhavam”.

Para este caminho trilhado em conjunto entre alunos, pais e trabalhadores, Elsa Madeira destaca a importância da autonomia na aprendizagem. “Nós temos vindo a refletir muito e a fazer constantes mudanças principalmente nos momentos de transição. Às vezes, havia a questão de as crianças irem lavar as mãos e irem todas ao mesmo tempo para o refeitório. Nós não apostamos nessas dinâmicas, as crianças, individualmente, vão lavando as mãos, vão-se sentando, vão almoçando, enquanto outras brincam. Vamos tendo, obviamente, atenção sobre quem precisa de almoçar mais cedo e quem não precisa. Há esse cuidado individual que depois requer toda uma organização diferente. Eles também não vão todos ao mesmo tempo para a sesta, dá-nos uma tranquilidade muito maior”.

A coordenadora do pré-escolar deste espaço educativo, Ana Jordão, sublinha justamente a importância dos passos dados: “Essa reflexão também permitiu, aqui na parte do pré-escolar, começar a dar esse passo. Sinto que no início o grupo vinha todo junto para o refeitório e saía todo junto do refeitório, as crianças esperavam muito umas pelas outras. E, neste momento, refletindo aqui nesta dinâmica da creche, à medida que as crianças vão terminando, há um adulto que depois se desloca e eles vão deslocando-se pelo espaço para a casa-de-banho, portanto, já começa a haver aqui mais esta consciência de que não têm de todos esperar por todos. E sendo um espaço que eles conhecem, sabem onde é a sua sala, sabem onde é a casa-de-banho, faz todo o sentido deslocarem-se até à casa-de-banho e depois até ao acolhimento, onde fazem a sua sesta porque, no fundo, é um espaço que lhes transmite segurança e que eles conhecem, e há sempre um adulto disponível – vários adultos – que apoiam estas transições”.

Um modelo de auto-organização e participação coletiva

Ana Jordão trabalha nesta escola há seis anos e faz parte da construção de um modelo pedagógico que tem a participação como referência. Com o Movimento da Escola Moderna como farol, o esforço de todos por melhorar é permanente. “Existe aqui, dentro da rotina, vários momentos em que eles têm oportunidade de estar num grupo alargado e partilhar experiências, aprendizagens, coisas que vão acontecendo, não só lá fora… Por exemplo, o momento da manhã, no acolhimento, as crianças trazem coisas de casa e partilham entre elas, grupo, objetos que alimentam muito os interesses do grupo e que alimentam muito o planeamento, a aprendizagem que vamos fazendo. Ou seja, são, no fundo, o fio condutor daquilo que vamos promovendo em termos de aprendizagem e de desenvolvimento que é, neste caso, o acolhimento em conselho. Depois, no final da manhã, existe aqui um tempo que é o tempo de comunicações em que eles partilham aquilo que aprenderam, alguma aprendizagem que fizeram, alguma brincadeira que aconteceu, ou até mesmo nós adultos, alguma coisa que observámos e que acabamos por trazer ao grupo alargado para fazer esse momento de partilha”, descreve. Outro momento destacado por esta coordenadora é o balanço em conselho em que avaliam o que foi planeado e se o que foi feito está de acordo com esse plano.


As duas coordenadoras trabalharam noutras escolas e sentem diferenças no modelo pedagógico utilizado. Ana Jordão refere que é importante haver uma identificação pessoal com o modelo explicando que, ainda assim, não adianta acreditar nele se não se souber levar à prática. Já Elsa Madeira tem a experiência de ter sido aluna d’A Voz do Operária e diz que é algo que não desaparece. “Por exemplo, comparando até com aquilo que eu vejo na escola pública, é uma diferença enorme, principalmente na participação ativa que as crianças têm, de poderem dar a sua opinião, de poderem participar, de poderem ser críticas naquilo que estão a observar dentro do seu espaço”. A participação e a emancipação das crianças enquanto agentes críticos na sociedade é algo muito valorizado por estas duas trabalhadoras d’A Voz do Operário. “Em 2022, juntamente com as famílias, trabalhou-se no sentido de melhorar o contexto exterior. Fizemos mesmo aqui uma intervenção com as famílias, e este ano queremos dar continuidade porque não houve respostas, também não houve melhorias, desde o lixo, desde o cocó no chão, desde o estacionamento, e então é algo pelo qual nós queremos continuar a batalhar, e acho que isso também transmite às famílias que não podemos parar, no fundo, de lutar pelos nossos direitos”, defende Elsa Madeira. Em relação a isso, Ana Jordão considera que não acontece o mesmo em muitas outras escolas. “Se calhar, os professores estão tão preocupados em cumprir o programa que não há essa oportunidade, esse tempo, essa possibilidade”, sugere. “Os interesses das crianças não são ouvidos, a voz das crianças não é ouvida. E aqui, apesar de existirem orientações curriculares, tentamos sempre que os interesses deles sejam ouvidos e por detrás disso está o nosso conhecimento, enquanto educadores, dessas orientações e daquilo que é importante trabalhar nestas idades”. 

O impacto na comunidade

Com uma relação de proximidade com o exterior, A Voz do Operário tem procurado, desde sempre, estender o seu trabalho para lá das suas portas e viver em comunidade. De acordo com Ana Sofia Cardoso, diretora pedagógica e de equipamentos d’A Voz do Operário da Margem Sul, a escola tem um grande impacto na área envolvente. “Não temos muitas escolas que trabalhem assim com um modelo como o nosso, que consigam ir ao encontro das necessidades das crianças e, ao mesmo tempo, aqui não só das vivências que trazem e do que têm, mas como ajudá-las a levarem isso ainda mais além”, explica. Este espaço educativo está inserido num contexto socioeconómico de muitas dificuldades, baixos salários e precariedade laboral, e a escola não é indiferente a essa realidade. “Estas famílias trabalham muitas horas e as crianças, por vezes, o tempo em que estão fora da escola, estão entregues a irmãos que são pouco mais velhos. Portanto, em termos de experiências, de vivências, em termos de conhecer o mundo de outra forma, estamos a falar de crianças muito circunscritas ao seu próprio contexto, às coisas que acontecem na sua comunidade. Eu acho que as pessoas da escola acabam por ter um papel muito importante no sentido de trazer outras coisas, de trazermos outros olhares, outras experiências, outras vivências, coisas que normalmente as crianças não têm”, descreve. Nesse trabalho, a escola articula-se com a Junta de Freguesia de forma a terem outro tipo de atividades que também existem na rede pública, mas o trabalho de contacto com a comunidade vai mais além e o contacto com o movimento associativo é permanente. “Já conseguimos que participassem no mercado de natal que fazemos numa associação, o Atlético Clube. O Chinquilho colabora connosco nas atividades associativas. Tivemos também uma reunião de abertura para conhecer as escolas que existem aqui à volta, porque muitas destas crianças depois vão para outras escolas e há o interesse das outras escolas de nos conhecerem, para perceberem esta dinâmica que, às vezes, é tão diferente”, sublinha.
O facto é que A Voz do Operário tem impacto na comunidade, nas famílias, nos trabalhadores mas, sobretudo, nos alunos. De tal forma que há quem distinga as crianças d’A Voz do Operário que chegam à escola pública pela sua capacidade de estar, pensar e intervir. Essa marca distintiva é fruto de um trabalho coletivo que se alicerça num modelo pedagógico que se quer participativo.

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