Opinião

A Voz dos Livros

O Alfarrabista de Ponta Delgada

O Alfarrabista de Ponta Delgada, de Francisco Duarte Manga

Francisco Duarte Mangas é um poeta da natureza, de voz singular pela qual a capacidade metafórica se enlaça sem rebuscamentos sintácticos, brota dessa puríssima fonte das palavras exactas com a naturalidade do respirar. Árvores, pássaros, rios, gatos, o casario das aldeias perdidas nos montes, os rebanhos em transumância, o olhar melancólico dos que teimam em cultivar as leiras da subsistência, as foices, os arados, os caminhos das terras frias de entre Douro e Minho. Um esteta das alvuras, do que na natureza tem chão, raízes, astros.

Poeta que convive, para além desse universo telúrico, com outras realidades, outra escrita, outro modo mais amplo de ver o mundo. Autor de vários romances notáveis, contos e narrativas, dos quais saliento Diário de Link, Jacarandá, A Cidade das Livrarias Mortas Pavese no Café Ceuta, textos que nos remetem, à excepção de Diário de Link, para o seu Porto de afectos, de trabalho, de lutas e, por vezes, de desencanto.

Falemos do mais recente livro de Mangas, O Alfarrabista de Ponta Delgada. O autor deixa os seus percursos ficcionais por terras do Norte do País e fixa o seu olhar dúctil na paisagem, nas flores, árvores e frutos da bela ilha de S. Miguel, em finais do século XIX, tempo em que em Lisboa a Geração de 70, iniciava as Conferências do Casino, que queria mudar o modo como o país olhava as suas feridas sociais. Ao contrário de Antero de Quental, que afirmava Poder andar por todos os caminhos/indiferente ao bem e às falsidades/Confundindo chacais e passarinhos, Duarte Mangas olha e vê na luxuriante paisagem sinais perturbadores da aparente placidez da ilha; vê que no jardim e nas terras da grande casa senhorial «trabalham algumas crianças. Dessa situação faz gala de sambenito o feitor. Ou seja, vangloria-se da má ação que pratica. Rende mais o trabalho de duas crianças do que o trabalho de um velho, e fica em conta, diz ele.[…] O melhor remédio para quebrar as tentações, a da preguiça e a da gula, é força-los a manter a enxada em constante movimento.» Mas não só a usura de um tempo quase feudal invade este duplo olhar sobre a realidade da ilha maior do arquipélago. Embora se diga nesta narrativa de trabalhadores e amos, a matéria fulcral remete para a natureza e para os diversos modos como o homem, ao longo dos séculos, para o bem e para o mal, a tem habitado e transformado. Trata-se de um discurso originalíssimo, contado a duas vozes, com mais de um século de distância entre ambas, tendo por base um livro sobre botânica de um tal George Brown, «um poeta da paisagem, um utópico que levantou do chão parte dos seus sonhos.» O Alfarrabista de Ponta Delgada, edição Caminho das Palavras/2022.

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