Nasceu e cresceu em Lisboa, no Bairro Alto. Que memórias tem da sua infância e adolescência
Vivi no Bairro Alto até há 25 anos. Ou seja, quase sempre. A minha infância, do ponto de vista familiar, foi triste. O meu pai morreu quando eu tinha 12 anos. Comecei a trabalhar nessa altura e, portanto, nunca pude ser criança, digamos assim. O que também me levou, desde muito cedo, a participar em movimentos associativos, numa série de atividades, porque depois tinha de me expandir para algum lado, não é?
Em que começou por trabalhar?
Eu trabalhei numa latoaria. Na altura, era uma coisa interessante. As primeiras máquinas que se produziram para assar frangos eram feitas nessas latoarias e eu era um dos ajudantes. Não tinha qualificação nenhuma, era servente, mas marcou para sempre a minha memória. Era ali na parte de baixo do Camões, e eu morava lá mais acima. Ficou sempre na minha memória aquele meu primeiro pontapé de saída depois do falecimento do meu pai.
O meu pai trabalhava no Museu de Arte Popular, em Belém, e eu acabei, depois, por conversas da minha mãe, por ir para paquete do então chamado SNI, (Secretariado Nacional de Informação) que era o Ministério da Propaganda. E fui para lá. De maneira que a minha infância foi assim, a trabalhar.
Era uma família grande?
A minha mãe e mais dois irmãos. Eu era o mais velho. E a minha mãe estava sozinha, empregada de limpeza, de maneira que o seu salário era uma coisa também reduzida. Uma coisa reduzida como é hoje, que isto está tudo a voltar ao mesmo. Era necessário ajudar e, portanto, aquele salário que eu recebia lá, como paquete, foi uma ajuda importante para a casa.
Quais foram as primeiras atividades associativas?
Eu comecei a ter atividade associativa ainda antes de ser paquete quando, lá na colectividade do bairro, comecei como desportista. Joguei de tudo. É a minha ligação ao movimento associativo. O movimento associativo é uma coisa da minha constituição, da minha forma de estar. Eu andei nas áreas do futebol, como toda a malta andava; andei na área do atletismo e, depois, fui seccionista de mais duas, e era muito giro. Uma foi o boxe ou pugilismo. Na altura, no Bairro Alto, era uma coisa muito importante. Também cheguei a ser seccionista de andebol. Isto tudo no Lisboa Clube Rio de Janeiro, que era a colectividade do bairro. Ainda hoje existe. Ainda faço parte dos corpos gerentes ao fim destas dezenas de anos. E costumo dizer que é o clube do meu pai, a única que existia no Bairro Alto.
E os primeiros contactos políticos?
Lá no CENI, acabei por ter os meus primeiros contactos, de um ponto de vista político, com os católicos progressistas. Eu nem sabia muito bem o que era aquilo. Foi por volta de 1970.
Eu era dos poucos putos que não se importava e que gostava de andar nos carros a fazer o transporte das cartas no CENI. Então, queriam-me lá na redação. Eu, durante um tempo, quando não tinha nada que fazer, entretinha-me ali a tentar valorizar-me, a escrever à máquina, e tínhamos os duplicadores. E é nessa altura que sou abordado por amigos. Havia documentos contra a guerra colonial e de apologia da luta contra o fascismo. A parte interessante é que essas coisas eram feitas dentro de sítios onde se controlava o poder, como o Ministério da Propaganda. Portanto, o facto de estar ali sozinho deu condições para algumas destas atividades serem assim. Foi aí que comecei a envolver-me mais. Primeiro, inconscientemente, porque um gajo se tivesse um bocado de consciência do que andava a fazer, na toca do lobo, era comido. Mas a minha inconsciência era tal, que dei, sem me ter apercebido da gravidade, alguma contribuição a esta luta antifascista.
E, claro, continuo o meu percurso na coletividade. Fiz parte da comissão cultural em que organizámos exposições; levámos, como todas as coletividades, o Coro Lopes Graça. Fazia parte da frente antifascista. Tínhamos uma exposição de livros quando levo a minha primeira prisão. Já nessa altura estava no partido e envolvi-me numa primeira ação de propaganda num 1.º de Maio em 1972 ou 1973. Era ali no Bairro Alto que eram guardados muitos documentos. O que é facto é que entraram pela minha casa adentro. Eu sempre estive preso por pouco tempo, de quatro a cinco meses.
E a segunda vez?
Dessa vez saí no dia 24 de Abril, no dia antes do 25 de Abril de 1974, porque estavam a despejar as prisões para começar a prender a malta do 1.º de Maio. Na altura, decidiu-se formar uma cooperativa. Faz parte da história antifascista, muito conhecida. Uma cooperativa de livros em Benfica, que era uma farsa; era uma forma de a gente poder reunir. Estávamos lá mais de 50 camaradas. Uma coisa extraordinária, olhando àquela altura. A polícia chegou, prendeu-nos, levou-nos para o Governo Civil e é daí que transitamos para Caxias. Para mim, já era a segunda vez. Na primeira prisão, ao ser preso individualmente, um tipo fica muito mais fragilizado. Na segunda, era tanta gente; meteram-nos a todos naquelas partes velhas da Prisão de Caxias porque já não tinham sítio para nos pôr. E isso contribuiu para nos organizarmos, de maneira que os pides, quando eu fui interrogado, além dos nomes que chamavam, diziam “aquela merda, aquela merda dos livros”. Eu estava lá para isso dos livros, o que é que eu podia dizer? Tinham cometido esse erro.
Entretanto, chego a casa no dia 24 de Abril, e já me tinham dado a entender que eu ia voltar para a prisão mais depressa do que estava a pensar. E relacionava isso com o 1.º de Maio. No dia 25 de Abril, começam aos murros à minha porta às sete da manhã e eu achava que eram os pides. Eram os meus amigos a dizer que havia perturbações com tanques. O início do caminho para a liberdade.
Vivia bem perto do Largo do Carmo. Como foi esse dia?
Nas primeiras horas, houve gente que esteve recolhida em casas, porque se houvesse algum problema, teria de haver alguma defesa. Tenho uma fotografia com o Lino no Largo de S. Roque. O MFA apelava a que a população ficasse em casa e o partido [PCP] dizia o contrário. Passei o dia em cima de uma daquelas árvores em frente ao Quartel do Carmo onde vejo a rendição do Marcelo.
E como se dá a ligação à A Voz do Operário?
Estive no Sindicato dos Ferroviários por muitos anos. Eu já era sócio d’A Voz do Operário porque o meu filho mais velho era aluno, mais tarde também o Jojó, o Zé Miguel e até os meus netos. Portanto, a ligação dá-se enquanto pai, embora com grandes dificuldades devido à falta de disponibilidade por causa da luta.
Mais tarde, nos anos 80, concorremos aos órgãos e somos eleitos. Sou dirigente d’A Voz do Operário há 38 anos e fui vice-presidente quase sempre. Só fui presidente da direção num período em que houve um problema com o então presidente que acabou por se demitir.
Mais tarde, isto complicou-se e era necessário ter alguém da direção a tempo inteiro. Isto não era uma coletividade de pequena dimensão. Tinha escolas, muita gente. Não podia continuar a ser gerido por malta que só vinha aqui ao fim do dia, e com problemas muito graves que precisavam de ser resolvidos na altura. Foi então que passei a ser diretor a tempo inteiro. Nos primeiros meses, a situação financeira não permitia que A Voz me pagasse o salário e foi o Sindicato dos Ferroviários que assegurou esse pagamento.
Que momentos foram mais marcantes neste percurso?
Um deles foi o mês em que conseguimos, fruto do trabalho de todos, deixar de ter salários em atraso. Faça-se justiça, particularmente aos professores, que nunca viraram as costas a isto.
Outro dos passos que penso que foi importante foi quando conseguimos abrir os 2.º e 3.º ciclos. Chegámos a ter tudo isto n’A Voz do Operário. Também registei com satisfação termos ganho o concurso da Segurança Social para ficarmos com a gestão de vários outros espaços. Conseguimos fazer um trabalho extraordinário de aproximação aos pais. A parte pedagógica não tem nada a ver com o que era antes. Quando estamos aqui de manhã à noite e fins-de-semana, mas vemos que as coisas andam, isso enche-nos de alegria.
Mas temos trabalhado para que A Voz não seja apenas uma escola. Temos de ser, em primeiro lugar, uma coletividade que tem muitas coisas, que tem um jornal, tão importante; que tem exposições, que tem atividade cultural e recreativa. E depois, que tem uma escola, está claro. Devemos continuar a trabalhar para alargar a nossa atividade associativa.
Depois de todos estes anos, está satisfeito?
Eu penso que este trabalho não é um trabalho individual, mas sempre coletivo. Não fazemos nada sozinhos. Quando faço uma análise geral do trabalho que desenvolvemos, A Voz do Operário não seria o que é hoje se estes passos não tivessem sido dados. Comigo a coordenar, é certo, mas foi devido ao empenho de muita gente, quer em termos profissionais, quer em termos de direção, mas particularmente devido aos trabalhadores.
Passou a vida quase toda ligado a diferentes coletividades. Que peso têm na sua vida?
A minha vida é o movimento associativo. Tive várias propostas, incluindo regressar ao meio sindical, porque cheguei a trabalhar num sindicato. Mas a minha paixão foi sempre trabalhar dentro do movimento associativo. Nasci aí. Na coletividade do Bairro Alto. Noutras colectividades, na própria CNIS [Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade]; cheguei a ser do conselho geral da própria CNIS. Continuo a ser presidente da assembleia geral do Operário Futebol Clube de Lisboa. Até sou presidente da assembleia geral de um parque de campismo. Sou presidente da assembleia geral da Associação das Colectividades de Lisboa. Eu nem me conseguia ver a dar a minha contribuição noutra área que não fosse esta. Se calhar porque fui ensinado e empurrado para isto, mas também porque, em termos pessoais, me sinto uma pessoa realizada. Acabo esta função n’A Voz, enquanto diretor geral, sete anos depois de ter pedido para sair devido à idade. O problema da malta que vai tendo muita idade é que cada vez vai tendo mais certezas de que tem razão.
A direção d’A Voz do Operário decidiu atribuir-lhe o reconhecimento de sócio honorário. O que significa para si?
Quando isto foi proposto na direção, a minha primeira reação foi dizer que não. A criação destas homenagens a sócios honorários tem a ver com propostas que fiz, pessoalmente, para dar mais brilho ao aniversário d’A Voz do Operário e, para mim, as pessoas serem sócios honorários desta casa é serem pessoas com vulto cultural, intelectual, e que tragam mais apoios à Voz do Operário. A direção respondeu de forma unânime que a minha posição estava correta mas que a instituição ficava melhor se pudesse homenagear, desta forma, alguém que trabalhou aqui quase quatro décadas. E eu fiquei sem palavras em relação a isto.