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Trabalho

Esmiuçar conceitos laborais

Por vezes, as leis parecem encerrar um intrincado conjunto de conceitos indecifráveis que deixam os trabalhadores à deriva num mar de incompreensão. Mas, afinal, para que servem as normas que regem o trabalho? O que é a contratação coletiva, o princípio do tratamento mais favorável e a caducidade? Só é pobre quem quer? Um artigo que ajuda a desmontar mitos e a esclarecer alguns conceitos.

John Salvino on Unsplash

Para que serve a LEGISLAÇÃO LABORAL?

A legislação laboral é o conjunto de normas que regulam a relação entre trabalhadores e patrões. Depois do 25 de Abril, os legisladores reconheceram que essa relação é marcada por um desequilíbrio de força, a luta de quem não tem mais nada para vender do que a sua força de trabalho em troca de um salário foi conquistando direitos ao longo da história. Desde a escravatura à atualidade, passaram séculos de uma história de resistência pela consagração de muitos direitos.

Não há muito tempo, em pleno fascismo, os trabalhadores amontoavam-se nas praças, à espera que um capataz os escolhesse para trabalhar no campo. Ele determinava quem trabalhava, por que preço e quantas horas. Hoje, essa realidade acontece com muitos imigrantes, sobretudo no setor da construção, mas é uma práticaproibida pela legislação. Na altura, era absolutamente legal e amparada pelo regime. Apesar de os direitos dos trabalhadores na legislação laboral terem sofrido já muitos recuos, estas normas continuam a ser um muro de contenção contra a exploração desenfreada. Hoje, existe legislação laboral porque há um reconhecimento de que há uma relação desigual e que, por isso, foi preciso criar um ramo do direito, o direito do trabalho, para tratar o que é diferente.

Esse tratamento entre iguais acontece no direito civil onde, por exemplo, quem compra e quem vende um automóvel não parte nessa circunstância particular de uma relação desigual.

Mas qual é a importância da CONSTITUIÇÃO para os trabalhadores?

Com a revolução de Abril, inaugurou-se uma mudança nesse desequilíbrio entre trabalho e capital, aliada à conquista de direitos económicos, sociais, políticos e culturais. Durante um breve período, sobretudo durante os governos de Vasco Gonçalves, os direitos dos trabalhadores registaram grandes avanços e, apesar da contra-revolução ter derrubado essa linha política, a Constituição ainda hoje reconhece a importância de exercer peso na balança a favor de quem trabalha. Se assim não fosse, os patrões teriam o poder para impor a sua vontade nas relações laborais.

Na primeira parte da Constituição, dedicada aos “direitos e deveres fundamentais”, há um capítulo dedicado aos “direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”. Nele estão plasmados artigos sobre segurança no emprego, comissões de trabalhadores, liberdade sindical, direitos das associações sindicais e contratação coletiva e direito à greve e proibição do lock-out. Mas logo a seguir, no capítulo sobre direitos e deveres económicos, dois artigos referem o “direito ao trabalho” e “direitos dos trabalhadores”.

Por exemplo, afirma, entre outras coisas, que “todos têm direito ao trabalho” e que para assegurar esse direito “incumbe ao Estado” promover a “execução de políticas de pleno emprego”. Também consagra a “retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”. Descanso semanal, férias pagas, assistência material em caso de desemprego, acidente de trabalho ou doença profissional, proteção das mulheres durante a gravidez são também vários dos direitos referidos.

Mas se há estas leis, por que é que parece que as coisas estão a piorar?

Em 2003, com o governo de Durão Barroso (PSD), a legislação laboral sofreu várias alterações desfavoráveis aos trabalhadores. Isso resultou na admissão da caducidade das convenções coletivas, bem como a eliminação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador. Houve uma queda significativa do número de contratos acordados e, sobretudo, uma brutal diminuição do número de trabalhadores abrangidos pela contratação coletiva, agravando a sua desproteção.

Se em 2003, antes da alteração ao Código do Trabalho, a renovação da contratação coletiva abrangia 1 milhão e 500 mil trabalhadores, em 2013 o número de trabalhadores abrangidos pela renovação dos instrumentos de regulação coletiva de trabalho era de apenas 241 mil. Reduziram ainda, de forma significativa os prazos da caducidade e sobrevigência dos contratos coletivos de trabalho, com vista a acelerar o seu fim e, por consequência, os direitos neles consagrados, para assim baixar salários e agravar a exploração.

E qual é a abrangência das CONVENÇÕES COLETIVAS?

Pode ser extensível a todos os trabalhadores do mesmo setor. Por exemplo, se houver um acordo, depois de uma negociação, entre uma associação nacional de lojistas e os sindicatos que abrangem os trabalhadores desse setor, pode ficar estabelecido que a convenção abrange todos os que trabalhem em lojas em todo o território.

E a CADUCIDADE?

Os contratos coletivos são, no fundo, direitos (quase leis) que, quando negociados, têm um prazo de validade. Até 2003, as convenções coletivas mantinham-se em vigor até serem substituídas por outras. Os governos de Durão Barroso e José Sócrates (PS) promoveram mudanças na lei e atualmente os contratos coletivos podem caducar terminado o prazo, mesmo na ausência de novo acordo, o que representa, na maioria dos casos a perda dos direitos negociados. Têm-se verificado vários casos de protelação e absentismo negocial, por parte do patronato, reforçando, em grande medida sua a vantagem negocial face aos trabalhadores.

Não deixa de ser curioso que, atualmente, seja o patronato a pedir a caducidade dos contratos coletivos quando, logo após a revolução de Abril, evitavam o fim desses acordos, receando ter de ceder mais direitos aos trabalhadores, em caso de nova negociação. Esta situação expressa bem o desequilíbrio de forças, das últimas décadas, na relação entre trabalhadores e patrões.

O que é isso da CONTRATAÇÃO COLETIVA?

A Constituição e a legislação laboral referem que compete às associações sindicais exercer o direito de contratação coletiva, mas o que significa isso? Para os patrões seria manifestamente mais vantajoso negociar cada contrato com cada trabalhador, de forma individual. A força dos trabalhadores unidos e organizados em sindicatos dá-lhes um poder negocial muito superior, o que lhes permite garantir melhores condições contratuais.

Ou seja, a contratação coletiva é o processo através do qual os patrões e os representantes dos trabalhadores negoceiam condições específicas de trabalho, a aplicar à empresa ou ao setor. Havendo acordo, são celebradas convenções coletivas de trabalho, sendo que há três tipos: contrato coletivo celebrado entre uma associação sindical e uma associação patronal; acordo coletivo, estabelecido entre uma associação sindical e uma vários patrões para diferentes empresas; acordo de empresa, entre uma associação sindical e um patrão, para uma empresa ou estabelecimento.

A contratação coletiva pode assim fixar salários, consagrar direitos em condições francamente favoráveis aos trabalhadores, muito acima do que está previsto no código do trabalho. É assim em matérias como pagamento de trabalho suplementar e noturno, pausas, descanso suplementar, subsídios de turno, majoração de dias de férias, feriados e dias de descanso, entre outros.

O que é o princípio do tratamento mais favorável?

A legislação laboral previa a impossibilidade de haver contratos de trabalho com condições piores do que as estabelecidas pelo Código do Trabalho e que, em qualquer caso (disputas legais, entre outros), seriam sempre aplicadas as normas mais favoráveis ao trabalhador. Contudo, as alterações introduzidas em 2003 puseram em causa estes direitos.


A LEGISLAÇÃO LABORAL não é demasiado RÍGIDA?

Esta tem sido uma das narrativas criadas pelos grandes grupos económicos e financeiros para justificar a perda de direitos dos trabalhadores e o aumento dos lucros das empresas. Segundo esta lógica, o país melhoraria a sua economia se pudessem obrigar quem trabalha a fazê-lo durante mais horas, por piores salários e sem contratos, numa situação de absoluta precariedade laboral. Nos últimos anos, as baterias têm estado apontadas contra a proibição do despedimento sem justa causa, um obstáculo para as associações patronais.

A narrativa da excessiva rigidez das leis laborais tem servido para que sucessivos governos fragilizem as relações laborais e retirem direitos aos trabalhadores. O facto é que a flexibilização das leis laborais não significou mais desenvolvimento para o país. Portugal continua a distanciar-se da média europeia e há vários países com níveis superiores de desenvolvimento em que os trabalhadores têm melhores condições de vida.


Qual é a importância dos SINDICATOS?

Sindicatos são trabalhadores organizados, que coletivamente ganham uma força que não teriam individualmente. A sindicalização e a participação nas estruturas sindicais é um elemento central na luta por melhores condições de trabalho. Foi através dos sindicatos que muitos direitos que hoje parecem inquestionáveis foram conquistados. Mas as relações entre trabalhadores e patrões não são estáticas, e são influenciadas pelo contexto político e económico.

Só é POBRE quem quer?

Em Portugal, trabalhar não é sinónimo de sair da pobreza. De acordo com as conclusões do estudo “A Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, coordenado pelo sociólogo Fernando Diogo, da Universidade dos Açores e investigador no CICS.NOVA, são quase 60% os adultos pobres em Portugal que trabalham. Já em situação de vínculo laboral precário estão 26,6% e os trabalhadores com contrato. Chegam a ser quase um terço das pessoas em situação de pobreza. Ao Jornal de Notícias, o especialista em temáticas da pobreza revelava que, para si, o mais surpreendente era o facto de “a maior parte ter contrato efetivo há muitos anos: 10, 20 ou mais”.

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística analisados pelo estudo, um quinto da população portuguesa vivia em situação de pobreza entre 2003 e 2018. Nesse ano, a taxa de pobreza era de 17,2% (1,7 milhões de pessoas), já após apoios sociais (exceto pensões). Em Portugal, um em cada quatro desempregados são pobres.

Esta realidade reflete-se também na vida das crianças portuguesas. Uma em cada cinco está mergulhada na pobreza.


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