Entrevista

Trabalho

“A bolsa de investigação não é uma bolsa de estudos”

Bárbara Carvalho tem 26 anos, é bolseira de doutoramento em ciências musicais na Universidade Nova e desde junho de 2020 que preside à ABIC – Associação de Bolseiros de Investigação Científica. A associação, fundada em 2003, tem como principal objectivo a revogação do Estatuto do Bolseiro de Investigação e a integração de todos os trabalhadores científicos nas respectivas carreiras profissionais.

Começava por pedir que fizesse um retrato do que é ser bolseiro. Qual é o percurso habitual e o que é que faz no seu dia-a-dia de trabalho?

O bolseiro é, antes de mais, uma pessoa que trabalha. Pensando num percurso hipotético, mas que é habitual: a pessoa faz a sua licenciatura, durante esta tem contacto com a investigação que é feita nas universidades, muitos acabam por fazer estágios curriculares em centros de investigação. Nesta fase pode existir uma categoria de bolsa destinada a licenciandos, que são as bolsas de iniciação científica — cujo salário é abaixo do Salário Mínimo Nacional, em exclusividade. Depois a pessoa faz, eventualmente, o seu mestrado e pode eventualmente trabalhar em investigação ao abrigo de uma bolsa de investigação. Antigamente havia bolsas específicas para fazer o mestrado, à semelhança das bolsas de doutoramento, mas já não existem. E depois faz o seu doutoramento, que pode ser financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), que é a entidade que regula a ciência em Portugal, ou por outras instituições. Acabando o doutoramento, terá depois um percurso em tudo semelhante, mas já com autonomia científica, o que permite coordenar um conjunto de atividades científicas. Este percurso era, até agora, muitas vezes feito de bolsas atrás de bolsas: neste caso de pós doutoramento. Deram-se alguns passos, portanto agora os doutorados já não têm bolsas de investigação mas sim contratos, embora precários, porque são no máximo de 6 anos.

O dia a dia do bolseiro é muito diferente consoante as áreas. Há bolseiros afetos a projetos que requerem trabalho laboratorial e que têm um horário fixo; há doutoramentos em empresas, em que o bolseiro desempenha parte do seu trabalho numa empresa específica; há bolseiros cujo trabalho é mais autônomo e trabalham em diversos espaços.

E o que é que é esperado do bolseiro?

É esperado que publique, que faça comunicação de ciência, que atinja resultados, no fundo o mesmo que é esperado de um doutorado contratado. Evidentemente, salvaguardando que são ainda pessoas em formação e carecem da tal autonomia científica que o doutoramento garante, mas tendo uma tutela e orientação científica, são esperados deles os mesmos resultados que são esperados de outras pessoas noutras fases das carreiras.

A maior parte dos bolseiros concentra-se no ambiente académico e nos centros de investigação associados?

Sim, basicamente. Houve uma alteração que é preciso referir. O bolseiro de investigação, neste momento, tem de estar a fazer formação, portanto, está necessariamente ligado a instituições de ensino superior. Nesse sentido, algumas universidades criaram cursos não conferentes de grau, pós graduações ou cursos com alguns créditos. Há universidades que criaram cursos de assistência à investigação, dos quais as pessoas não precisam porque já têm aquelas ferramentas, mas assim continuam a estar inscritas e continuam a ser bolseiras. A questão da formação é uma falácia na perspetiva daquilo que deveria ser o vínculo, porque a investigação que estas pessoas desempenham não tem de estar necessariamente ligada àquilo que fazem enquanto formandos. No caso dos doutorandos é diferente, porque têm uma bolsa para fazer a sua tese, mas ainda assim, são deles esperados resultados e a sua produção é contabilizada pelas instituições .

Um cenário destes é algo que se concebe para um curto período da vida. Mas há pessoas que desenvolvem uma carreira na investigação científica e que passam anos, às vezes décadas, com bolsas.

Em 2017, quando ocorreram as maiores mobilizações pela contratação de doutorados (Lei 57/2017), houve uma grande transformação. Toda a gente se juntou para uma discussão aprofundada sobre o que é ser bolseiro e sobre o que é esta realidade. No quadro dessa discussão houve vários casos que vieram ao de cima. Casos que sempre chegaram à ABIC — temos uma área que é de apoio ao bolseiro — muitas vezes muito dramáticos. A grande maioria das pessoas que trabalhava em centros de investigação universitário faziam-no, à data, ao abrigo de bolsas. Havia uma instituição que tinha um jardineiro que era bolseiro. Percebemos também que uma equipa para monitorizar o risco de incêndio era composta por bolseiros precários. Havia muita gente que à beira da reforma continuava a ser bolseira. Eram trajetórias de muitos anos, dez e quinze anos na mesma instituição, em que as pessoas desempenhavam as mesmas funções.

A Fenprof fez um inquérito, em 2019, sobre a precariedade na ciência. Até para nós os resultados foram surpreendentes: as taxas de pessoas que manifestavam questões relacionadas com burnout, ainda antes da pandemia, era enorme.

Como se traduz essa precariedade?

Não há acesso a subsídio de desemprego, a subsídio de férias, e subsídio de Natal. As bolsas foram aumentadas de há dois anos para cá, mas não eram aumentadas desde 2002, portanto houve uma grande perda de poder de compra. Não há descontos para a reforma — há o seguro social voluntário que, como o nome indica, é voluntário e a FCT só paga o mínimo dos descontos do escalão. Há pessoas que tendo bolsa de investigação, tiveram baixas em casos de doenças prolongadas de 17 euros. Há pessoas que relatam casos de abuso de poder dantescos. São meios muito pequenos e o medo de represálias é muito grande. O Ministério, a FCT e as instituições operam sempre numa política de alta desconfiança para com aquela pessoa. E o Estatuto do Bolseiro é um instrumento que permite isso mesmo, permite que legalmente estas pessoas tenham um quadro de precariedade e desproteção total. Temos bolsas de três meses, bolsas de quatro meses, bolsas de um ano e as pessoas estão constantemente à procura de bolsas para se candidatarem para conseguirem sobreviver e no mês seguinte pagarem as suas contas.

Mas acabar com as bolsas é uma proposta viável? Qual é a alternativa?

A carreira de investigação, existe desde 1999. Quando nós dizemos que as bolsas são para acabar e é preciso uma carreira de investigação, nada disto é um sonho impossível. Há pessoas – poucas – que estão na carreira de investigação, sobretudo nos laboratórios do Estado. A carreira está feita, não é preciso inventar nada. Segundo este ministro, as bolsas são o que garante a total liberdade científica, porque não se está afeto a nenhum chefe, o que não é verdade, porque cada vez há menos liberdade científica, seja no financiamento afunilado, seja na própria escolha dos temas a trabalhar. Há outros países onde as bolsas não existem e há contratos: em Espanha os doutorandos têm contratos de trabalho, na Alemanha, na Dinamarca. E depois há a ideia “está em formação, portanto tem que ter uma bolsa”. É falso. A bolsa de investigação não é uma bolsa de estudos, não serve para a pessoa estar a estudar, é um salário que paga o trabalho daquela pessoa. Os médicos, quando estão no internato, estão em formação e têm, e bem, um salário. A formação, em bom rigor, ocorre ao longo de toda a vida. 

E como é que as instituições reagem a essa exigência de integração na carreira?

Há uma vontade de não integração mas há também um desprezo. Há instituições que tinham investigadores que davam aulas há muitos anos, como falsos professores convidados, contratados ao semestre, quando na verdade supriam necessidades permanentes. Algumas dessas aulas nem sequer são pagas porque a pessoa é bolseira e as universidades exigem que as aulas sejam dadas. Mas a própria investigação também é uma necessidade permanente destas instituições. 

Porque é que as instituições acabam por ter este papel de confronto com os direitos destes investigadores? 

Haverá várias razões. Uma delas é sem dúvida o financiamento. As universidades estão escaldadas pelo subfinanciamento crónico. Isso não justificará tudo e acho que é mesmo preciso que cada vez mais se fale das relações de poder, que já estão estabelecidas há muitos anos. Com as bolsas e mesmo com os contratos existe um exército de mão de obra altamente qualificada a um custo muito baixo. E agora os doutorados têm contratos, mas estes contratos não são pagos pelas universidades, mas sim pela FCT. O PREVPAP veio mostrar que os Reitores não querem considerar os investigadores como trabalhadores, mesmo com compensação financeira para os seus contratos.

O que também parece é que o bolseiro acaba por ter, no mínimo, uma dupla utilidade: faz a investigação relativamente à qual ganhou a bolsa e acaba por desenvolver uma série de trabalho muito útil às instituições.

É isso mesmo, acaba por ser um tarefeiro das instituições, tira fotocópias, dá apoio a conferências e ao mesmo tempo não tem voz nos poderes de decisão. O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior castrou largamente a participação ativa de todas as fações das instituições, desde estudantes a funcionários.

Que repercussões decorrem do facto de o sistema científico estar assente na precariedade destes investigadores?

A alta competitividade, alta precariedade e alta rotatividade como forma de garantir os resultados não garante necessariamente a melhor ciência possível. Nós defendemos um sistema científico onde haja uma ideia a longo prazo, de consolidação de equipas, havendo um sistema científico afeto às universidades, aos laboratórios do Estado e outras instituições, que permita ao investigador ter estabilidade. [O sistema] tem em vista, sobretudo, a questão da quantidade. Isso vê-se, por exemplo, nos relatórios da avaliação, de monitorização. O que conta é o número de artigos indexados nas revistas de topo. E isso não serve muitas áreas que ficam, à partida, excluídas dessa imediatez de resultados. Esta lógica não é a da valorização científica, daquilo que é mais importante cientificamente para determinado momento. E é isto que nós tentamos ativamente combater.

Mesmo que depreciando os resultados?

Não se trata de uma questão de não querer ter os melhores resultados ou os melhores possíveis. Estes investigadores são altamente avaliados em concursos altamente competitivos, passam muitos meses do seu ano a preparar candidaturas. Mesmo analisando por esta perspectiva mais pragmática do tempo de trabalho e dedicação, se não houvesse esta esquizofrenia da alta competitividade, se houvesse de facto uma estabilidade que permitisse uma estratégia a médio e longo prazo, em que as equipas pudessem decidir as candidaturas a fazer com base na maturação científica de determinado projeto e não com base na ausência de financiamento, isso certamente garantiria resultados científicos muito mais interessantes. 

Qual é a taxa de desistência na carreira científica?

Esses números não existem propriamente. O que sabemos decorre de um grande trabalho diário e de casos que nos chegam. Posso garantir que no último ano houve um aumento muito grande de pessoas a manifestar a sua vontade de desistência. O inquérito da Fenprof tem alguns dados muito exemplificativos. Por exemplo, a relação desproporcional entre aquilo que é a paixão por aquilo que fazem, que é uma taxa muito elevada, e depois o descontentamento com o vínculo e a desilusão, a falta de perspetiva ou uma falta de esperança. Há muita gente que acaba por emigrar e não numa perspetiva de internacionalização ou de passar um período fora para depois regressar. Muitas vezes não ficam porque é impossível e porque há clivagens muito profundas. Nós sentimo-nos sobretudo desprezados; esta ideia de que estas pessoas não valem nada, nem sequer podem ser consideradas trabalhadoras porque o que fazem só é válido momentaneamente, e acabam de publicar qualquer coisa e já têm de estar a pensar na próxima. É sempre uma bola de neve de horas de trabalho, horários completamente desregulados, muito trabalho ao fim de semana, muito trabalho à noite, muita dificuldade de gestão familiar. Por exemplo, a taxa de maternidade entre mulheres na investigação é muito abaixo da média nacional. 

Consegue mapear quais foram as principais vitórias que a ABIC conseguiu nos últimos tempos?

Houve algumas vitórias e tenho a certeza absoluta que só foram possíveis pela mobilização dos investigadores. Houve, desde logo, a questão da contratação de doutorados, o chamado Estímulo ao Emprego Científico, que não previa uma série de coisas que vieram a ser introduzidas por nossa reivindicação. Também o aumento do valor das bolsas foi, ainda que insuficiente, um passo importante. Num plano mais concreto, destacaria a devolução das propinas cobradas indevidamente pela ULisboa aos bolseiros de doutoramento.

É preciso ver se vai ser cumprido o fim das taxas de entrega da tese. É algo que a ser conseguido vai dizer respeito a muita gente. São taxas que, muitas vezes, atingem os 500 euros.

Vai abrir o processo negocial para a discussão da carreira de investigação. Agora é preciso que ela seja aplicada nas instituições públicas. Se esse passo for dado, e acho que é preciso continuar esta pressão, será algo que mudará drasticamente o panorama. Mas nenhum destes passos é dado por vontade própria da tríade Ministério – Instituições – FCT.

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