Multiplicam-se os protestos em toda a Espanha pela libertação do rapper Pablo Hasél, condenado a nove meses de prisão, e centenas de artistas portugueses somaram-se a esta luta pela liberdade de expressão.
A 4 de janeiro de 1977, Espanha decidiu acabar com o franquista Tribunal de Ordem Pública, herdeiro do Tribunal Especial para a Repressão da Maçonaria e do Comunismo. No mesmo dia, criou uma instância semelhante com outro nome: Audiência Nacional. Este tribunal superior que se mantém intocável serve para julgar casos de crimes contra a família real, delitos de terrorismo e casos de narcotráfico, entre outros.
Foi precisamente a Audiência Nacional que confirmou a sentença de nove meses de prisão para Pablo Hasél, nome artístico de Pablo Rivadullo Duró, rapper catalão, pelos crimes de “exaltação do terrorismo” e “insulto à monarquia” nas redes sociais e nas letras de algumas das suas canções.
Mas a detenção do músico, que motivou dezenas de protestos diários em vários pontos de Espanha, e até em Portugal, pela sua libertação imediata, não é um deslize de uma democracia que sem querer foi longe demais. É o reflexo da aprovação de leis anti-democráticas como foi o caso da lei orgânica de proteção da segurança cidadã aprovada em 2015, apenas pelos deputados do PP, que ficou conhecida como lei mordaça.
A então nova lei foi criticada até pelo The Guardian e um editorial do The New York Times instava a Comissão Europeia a condenar a nova lei, citando a relatora da ONU, Maina Kiai, que também exortou os legisladores espanhóis a revogar esta legislação. O jornal norte-americano afirmou que “esta lei remonta aos piores dias do regime franquista e não é apropriada numa nação democrática”. Tanto a Amnistia Internacional como a Human Rights Watch consideraram a lei uma “ameaça direta aos direitos de reunião pacífica e à liberdade de expressão”.
Pablo Hasél passou a ser o único artista preso em toda a União Europeia por delito de opinião mas não é o primeiro condenado. Também catalão, o rapper Valtònyc ouviu dos tribunais a sentença de três anos de prisão por publicações nas redes sociais. Em 2018, um dia antes da data marcada para a entrada no cárcere, fugiu do país e exilou-se na Bélgica, país onde também estão re ugiados vários políticos catalães perseguidos pelos tribunais espanhóis.
O vocalista do grupo Def con Dos, César Strawberry, esteve envolvido durante cinco anos num processo judicial que o poderia ter levado à prisão. A razão foi seis tweets publicados nesta rede social. Chegou a ser condenado a um ano de prisão pelo Supremo Tribunal por apologia do terrorismo mas o Tribunal Constitucional decidiu anular a pena. Contudo, ao espanhol Público, o músico mostrou-se indignado pelo calvário por que teve que passar.
“Estava no ramo da música há mais de 25 anos e de repente toda a minha carreira foi reduzida a seis tweets que se repetiam uma e outra vez nos meios de comunicação social. Sem contexto nem nada. Eu estava envolvido numa espécie de circo mediático em que o mais doloroso era o sentimento total e absoluto de injustiça e que me causou muitos danos, muitos problemas na minha vida pessoal e familiar e, claro, na minha vida profissional”, denunciou.
A utilizadora do Twitter, Cassandra Vera, é outra das vítimas deste entramado legal que condiciona a liberdade de expressão. Esta jovem esteve três anos nas barras dos tribunais por uma publicação em que brincou com a morte do antigo chefe do governo fascista e herdeiro político de Franco, Carrero Blanco. Alvo de um atentado da ETA, a magnitude da explosão que fez com que a viatura sobrevoasse um telhado é recordado todos os anos nas redes sociais como a primeira viagem de um espanhol no espaço.
Quando soube da acusação, não queria acreditar. Era muito jovem, não tinha dinheiro e vivia com a irmã. Queria ser professora no ensino e se fosse condenada seria impedida de aceder a qualquer lugar na administração pública. A pena de um ano de prisão anunciada pela Audiência Nacional acabou por ser anulada pelo Supremo Tribunal. No entanto, como César Strawberry, uma das piores recordações era estar no “centro das atenções dos media”. “Não sou artista nem cantora. Foi uma experiência bastante horrível”, afirmou ao Público.
Mas se tanto César Strawberry como Cassandra Vera foram absolvidos não deixa de ser surpreendente que o número de casos judiciais por apologia do terrorismo tenham disparado apesar de a ETA ter abandonado a luta armada em 2011. A lei mordaça foi aprovada em 2015 e em 2016 o Público advertia que o número de julgamentos por este delito estavam a quintiplicar.
Apesar de o ministro espanhol da Administração Interna, Fernando Grande-Marlaska, ter anunciado há um ano que o governo tinha como prioridade eliminar a lei mordaça, o facto é que a legislação continua em vigor. A prisão de Pablo Hasél veio recordar ao governo de coligação entre o PSOE, Podemos e Esquerda Unida a urgência de resolver rapidamente o problema.
Espanha, a Turquia da União Europeia
Espanha é, com França, o país que mais partidos proibiu em democracia, de acordo com a contabilidade de um artigo publicado na European Constitucional Law Review em 2017, sob o título Mapeando a “democracia militante”: Variações nas Práticas de Banimento de Partidos nas Democracias Europeias (1945/2015), de Angela K. Bourne e Fernando Casal Bértoa. Mas o país vizinho só alcançou o pódio depois da aprovação da lei de partidos em 2002 pelo PP e pelo PSOE, entre outros partidos, que conduziu à ilegalização de inúmeras formações independentistas bascas.
Esta política de Estado musculado não teve apenas vítimas entre os partidos. Organizações juvenis, meios de comunicação e associações culturais foram proibidos com o objetivo de silenciar o independentismo basco. Em 2012, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) condenou Espanha por não ter investigado suspeitas de tortura contra o diretor do jornal basco Egunkaria. Martxelo Otamendi foi agredido violentamente nos genitais, introduziram-lhe um plástico no ânus e asfixiaram-no várias vezes com um saco na cabeça até perder a consciência. Os tribunais espanhóis mostraram-se passivos perante as denúncias do jornalista, acusou o TEDH. Em 2015, saia da prisão Xabier Salutregi depois de sete anos e meio preso pelo crime de ser também diretor e jornalista na publicação Egin.
Espanha é, aliás, o país da UE mais visado pelo TEDH por não investigar denúncias de tortura. Em janeiro deste ano, o Estado espanhol foi condenado a pagar 20 mil euros ao independentista basco Ekin Iñigo González Etayo pelo mesmo motivo. Foi décima primeira vez que o tribunal de Estrasburgo condenou Espanha.