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A despedida do ‘barrilete cósmico’

“Vocês não sabem o que perderam”, podia ler-se na parede de um cemitério no dia em que a principal cidade do sul de Itália rebentou numa explosão de alegria. Pela primeira vez na sua história, o Nápoles conquistava o campeonato italiano contra tudo e contra todos. O inesperado fenómeno foi possível graças a um jovem que nasceu numa favela pobre de Buenos Aires e cujo sonho não era mais do que poder comprar uma casa aos pais. Sem características físicas que o pudessem prever e ao contrário da maioria dos grandes grandes jogadores, Diego Armando Maradona consagrou-se no sopé do Vesúvio, num clube mediano de uma cidade estigmatizada.

Em Nápoles, depois de não ser bem sucedido no Barcelona, o jogador argentino carregou em ombros uma equipa que representava os trabalhadores e o povo do sul, a que os do norte chamavam “terroni”. Ou seja, cor de terra. Cor de quem trabalhava sol a sol nos campos ou no mar. Historicamente mais pobre, o Nápoles de Maradona foi a bandeira de uma cidade maltratada, caricaturizada pela miséria, exclusão social, tráfico de droga e máfia. 

Com a morte do astro, desaparece uma lenda viva do futebol. Talvez no futuro digam que fomos privilegiados porque coexistimos no tempo histórico do ‘barrilete cósmico’, como lhe chamou Víctor Hugo Morales, o narrador do épico jogo contra Inglaterra no Mundial de 1986. Foi precisamente nessa partida, no México, país onde a Argentina se sagrou campeã, que os dois golos de Maradona resgataram a dignidade perdida quatro anos antes na guerra nas Ilhas Malvinas entre os dois países. Os argentinos tinham sido humilhados pelas tropas britânicas e despojados, uma vez mais, de um território que continuam a reivindicar como seu. 

O impacto da morte de Maradona não pode apenas ser compreendido pelo seu papel em campo. As cerimónias funebres, tão caóticas, emocionantes e populares como a sua própria vida, mostram a marca do futebolista na identidade argentina. Mas também no planeta. Na Argentina, a comoção é ainda absoluta. Como Gardel, Evita e Che Guevara, Diego Armando Maradona sobe ao Olimpo das referências históricas de um povo que celebra a vida com paixão. Nasceu no bairro pobre de Fiorito e morre velado no palácio presidencial. 

Noutras partes do mundo também se chorou Maradona. Na Síria, num edifício destruído pela guerra, apareceu uma pintura dedicada ao jogador argentino. Em Nápoles, a noite foi de lágrimas e peregrinação, numa cidade repleta de murais com o gigante do futebol, que lhe deve muita da auto-estima que hoje tem. O clube Nápoles anunciou que vai dar ao seu estádio o nome de Diego Armando Maradona.

Mas como em todas as paixões os defeitos varrem-se para debaixo do tapete porque Maradona para muitos estava acima de tudo isso. Eduardo Galeano defendeu que foi adorado não só pelo prodígio dos seus malabarismos futebolísticos mas também porque era um “deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses”.

“Jogava melhor do que ninguém apesar da cocaína e não por causa dela. Estava angustiado pelo peso do seu próprio personagem. Tinha problemas na coluna vertebral desde o longínquo dia em que a multidão gritou o seu nome pela primeira vez. Maradona carregava um fardo chamado Maradona, que lhe fazia doer as costas. O corpo como metáfora: doíam-lhe as pernas, não conseguia dormir sem comprimidos. Não demorou a perceber que era insuportável a responsabilidade de trabalhar como deus nos estádios mas desde o princípio soube que era impossível deixar de fazê-lo”, descreveu o escritor uruguaio.

O facto é que a sua personagem foi controversa. Desde o consumo de drogas, graças aos seus contactos com a Camorra, aos filhos não reconhecidos, das acusações de violência contra a sua mulher, ao recurso à prostituição. Com todas as contradições foi também o jogador consagrado que se dedicou a denunciar o sujo mundo do dinheiro no futebol ao mesmo tempo que defendeu atletas que não eram famosos. Foi alguém que nasceu na pobreza e que apesar da consagração nunca renegou as origens. E levou tudo isso para os campos de futebol e para fora deles.

Se a sua genialidade foi truncada pela cocaína, nas cloacas do capitalismo, foi Cuba que o conseguiu resgatar da toxicodependência. A sua relação com Fidel Castro, que considerava o seu segundo pai, e a sua admiração por Che Guevara foram expressão de um compromisso com a luta dos povos contra o imperialismo. Foi justamente Diego Maradona que acompanhou líderes como Hugo Chávez, Nestor Kirschner e Evo Morales no enterro definitivo do projeto neoliberal encabeçado pelos Estados Unidos de George W. Bush conhecido como ALCA.

Mas se então, em plena vaga soberanista e anti-imperialista na América Latina, era fácil assumir esse reto, Maradona nunca deixou de estar do lado de Cuba e da Venezuela nos momentos mais difíceis. Sem se preocupar, como outros, sobre o que significaria para a imagem do melhor jogador da história apoiar países ostracizados pelo resto do mundo, Diego deu a cara sem pedir nada em troca.

Pagou e assumiu em vida muitos dos erros que cometeu mas a razão por que há o aplauso de um planeta inteiro, apesar das luzes e sombras, deve-se ao talento de um homem que nunca renegou as suas origens, o “mais humano dos deuses”.

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