Sociedade

Covid-19

Quando a imposição do medo é uma prisão

Irene Sá

Quero contar-vos. É um desabafo, um vislumbre do que é colocar o medo da ameaça invisível à frente de tudo mais, o motivo que empurra à descrença de que as coisas estão a ser ponderadas. E a culpa não é da DGS. É das DGS que só existem nas cabeças de pessoas autoritárias, insensíveis, amedrontadas e, infelizmente, com poder de decisão relativo. Essas pessoas existem um pouco por toda a parte e, se antes já exerciam os seus pequenos poderes sob o medo dos poderes maiores a que estão sujeitas, agora exercem-nos também sob o medo exacerbado da “peste”.

Iria estar com a minha mãe ao fim de 74 dias. Tinha-a visto um par de vezes pela janela do 2° andar, 4 minutos no total. Ela, que pouco vê porque é cega de um olho e está com uma catarata no outro. Ela, que caiu e partiu uma perna em Outubro e depois de uma ida ao hospital mandaram-na para casa sem que médicos ou enfermeiros dirigissem sequer os olhos na direcção da perna. Ela, que acabou por voltar ao hospital depois de nova queda um par de dias depois. Ela, que esteve internada e confusa por dois meses. Ela, que sofreu dois AVC sem que o hospital se dignasse a informar a família. Ela, que foi para uma Unidade de Cuidados Continuados durante um mês e expulsa com o carimbo de “cumpridos os objectivos terapêuticos – pode ir para casa e viver sozinha com apoio domiciliário e suporte familiar” sem conseguir deitar-se e mal podendo levantar-se e andar. Ela, que foi levada para aquele lar meio à pressa, sem possibilidades económicas para outro, sem qualquer apoio. Ela, que ainda se agarrou à esperança de ser operada aos olhos para recuperar um pouco a visão e poder desfrutar um pouco da vida através dos olhos já que as pernas não funcionam: ler, escrever, desenhar, ver televisão, olhar para as pessoas. Ela, que ainda pensou ter fisioterapia a sério para poder recuperar um pouco a mobilidade. Ela, que está há quase dois meses cingida ao espaço à volta da cama porque não se pode aproximar das outras companheiras de quarto, não consegue ver a televisão, está longe da janela, come com o tabuleiro em cima da cama.

Ela estava entusiasmada com a visita e contava os dias. E o dia chegou. Uma visita de 90 minutos. Como aproveitar? O que dizer? Como evitar abraços, beijos e festas? Nem sequer me podia aproximar para tentar mostrar-lhe uma foto do neto. Levei a máscara cirúrgica nova, porque colocaram no regulamento que era obrigatório que fosse cirúrgica, ainda que a DGS diga preferencialmente cirúrgica. Mas, lá está, os pequenos poderes resolvem converter recomendações, conselhos e sugestões em obrigações e deveres impreteríveis. Aqui convém dizer que, quando não havia máscaras no mercado, o lar aceitou as 10 máscaras “sociais” que lhes levei (com 81%de protecção), as mesmas que agora não servem para eu visitar a minha mãe estando a 2 metros de distância. Entrei para o minúsculo pátio. O chão inundado de água com lixívia. Não me deixaram passar do portão.

Trouxeram a minha mãe para a porta do edifício e não a deixaram entrar no pátio, ficou a mais de dois metros, também ela com máscara. E pronto! Ali estávamos. Eu na sombra e ela meio na luz. Não me via. E também ouvia pouco porque ao lado estão a decorrer obras. Tivémos de falar muito alto. Eu estava em baixo e a minha mãe em cima. Entretanto a directora passava continuamente por trás da minha mãe. Tocaram à campaínha. A directora foi abrir passando entre mim e ela e obrigando-me a desviar a cadeira que me trouxeram e colocaram frente ao portão. Tocaram novamente. Foram de novo abrir. Era um carregamento de carne e tiveram de ir buscar umas grades para colocar no chão. Depois carregaram a carne e tiveram de levar a minha mãe para dentro para poderem passar. Passados 55 minutos dos 90 programados (e referidos pela DGS) para a visita semanal vem a directora dizer que a visita acabou, que tinha de desinfectar tudo para a visita seguinte. Quase nem me despedi.

Agora só há visita para a semana, mais uma hora, e é se não chover. Se chover não há visitas. A DGS recomenda espa- ços exteriores (uma vez mais, recomenda) mas diz que podem ser salas de visita e ali existe uma. Mas cruzes credo que nin- guém pode passar pela porta. Ainda perguntei à directora por uma conta de farmácia que tinha vindo com o dobro do valor habitual e ela diz-me que não sabe, e que só me diz o que era depois de eu pagar. Tem a minha mãe como refém. Discussão.

Depois pergunto se já sabe alguma coisa sobre a minha mãe poder sair para as consultas e exames marcados para Junho (5 no total, todas elas resultando de adiamentos). Arregala os olhos e diz-me que isso não poderá ser tão cedo. Ou então terá de ficar em isolamento durante 14 dias num quartinho e aponta para o quartinho que, pelos vistos, fica ao lado da cozinha e tem janela para o minúsculo e escuro pátio. A senhora ainda me diz, com ar de profeta da desgraça, que isto está muito mal, “em França já fecharam as escolas outra vez! 70 casos!” Só quando chego a casa percebo que não é nada disso, fecharam 70 escolas em 4000, 25 delas por causa de 1 único infectado, das outras várias por suspeitas (e nem sei se foram confirmadas).

A estas pessoas não lhes importa que as pessoas morram de fome ou de cansaço como as funcionárias que estão naquele lar internadas a trabalhar de dia e de noite. Não lhes importa que morram com problemas cardíacos, com AVC, com problemas respiratórios que não sejam covid-19, com problemas gástricos, com diabetes e muito menos com depressão. Não lhes importa que as pessoas não voltem a caminhar ou que voltem a ver. Não lhes importa que as pessoas andem confusas. Não lhes importa que cada pessoa é uma história, uma razão de ser e sentimentos acumulados. Neste momento só lhes importa ocuparem-se de alimentar o seu medo insano. Isto não é responsabilidade, é paranóia. Como diria o meu irmão, o sentido comum costumava ser uma coisa boa.

A minha mãe e todas as pessoas que ali vivem cometeram o crime de ser idosos, terem problemas de saúde, não poderem ser autónomos e não terem na família quem tenha condições de os cuidar em casa. É um crime violento este de ter vi- vido. E ainda maior é o crime de querer continuar a viver de verdade e não num simulacro de existência. Depois viro as costas e saio. Tiro a máscara. Respiro.

Isto é mais que distanciamento físico, mais que distanciamento social. É distanciamento, ponto. Porém há laços que nenhum distanciamento pode quebrar. Já estive ligada a esta mulher por um cordão umbilical. Devo-lhe a vida.

Artigos Relacionados