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Desespero da década. Quando a habitação é um luxo

É a cidade com maior esforço salarial para pagar rendas na Europa e a sexta no mundo. Um estudo concluiu que os habitantes da capital portuguesa têm de dedicar 50,4% do salário para pagar as rendas das casas onde vivem.

Em várias ruas de Paris, através de expositores publicitários, a imobiliária Green Acres anima os reformados franceses a procurarem casa no ‘El Dorado’ português. “Camarades, pour notre retraite, allons tous au Portugal!”, exclama o cartaz. Em agosto do ano passado, estreou no cinema a comédia Joyeuse Retraite! sobre as peripécias de um casal francês que se reformou e decidiu viver em Portugal. Se a sétima arte é também o retrato de uma época, este filme produzido em França mostra o impacto social do êxodo dos reformados franceses para o nosso país.

Meses antes de o filme chegar às salas de cinema, estalou a polémica em França sobre a isenção fiscal que Portugal oferece aos reformados de outros países. De acordo com a Agência Lusa, várias opiniões e propostas partilhadas na página Grande Debate – iniciativa do presidente francês para ouvir os cidadãos e promover o diálogo perante os protestos dos coletes amarelos – consideram os franceses que estão a usufruir da isenção fiscal durante 10 anos em Portugal “exilados fiscais” e afirmam que Portugal é um “eldorado” fiscal”.

O regime fiscal dos Residentes Não Habituais (RNH) foi criado em 2009 com o objetivo de atrair para Portugal pessoas de rendimentos elevados e profissionais de alto valor acrescentado, oferecendo isenção de IRS aos reformados e uma taxa reduzida de imposto (20%) aos rendimentos do trabalho. “Os exilados fiscais reformados que vivem há seis meses em Portugal e, brevemente, em Itália, continuam a receber a sua pensão dada pelos organismos públicos. É fácil identificá-los. No entanto, eles continuam a vir tratar-se em França gratuitamente apesar de já não contribuírem para o nosso sistema social. É preciso que paguem os preços reais dos tratamentos médicos que recebem”, escreveu um utilizador.

Outra proposta, segundo a Agência Lusa, sugeria sancionar quem se muda para Portugal ou outros países que promovem isenções fiscais com um corte de 50% das pensões atribuídas por França. “É preciso fazer pagar de alguma maneira todos os reformados que partem para fugir aos impostos em França, já que como não consomem aqui, o seu dinheiro não volta a entrar na economia francesa. Eles empobrecem a França. É um verdadeiro escândalo e uma prova de grande egoísmo”.

Independentemente da validade ou não de alguns dos argumentos em cima da mesa, o facto é que o assunto fez parte da ordem do dia e revela a forma como noutros países é vista a isenção fiscal de que reformados estrangeiros usufruem no nosso país. Os franceses representavam, em 2019, um terço dos 9.589 reformados doutros países que beneficiam deste regime.

A verdade é que, nos últimos anos, com a lei das rendas, implementada por Assunção Cristas, Lisboa e outras cidades do país se tornaram uma verdadeira bomba relógio com o aumento explosivo das rendas e dos despejos. Milhares de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas e a procurar alternativas nos arredores de Lisboa provocando um efeito em cadeia com o consequente aumento dos preços dos imóveis também nos subúrbios. Outras medidas, também aprovadas pelo governo liderado pelo PSD, como os vistos gold marcaram o investimento estrangeiro no mercado imobiliário numa demonstração de que politicamente tanto PSD como PS preferem os centros das cidades nas mãos do capital externo. O executivo liderado por António Costa não revogou a lei das rendas e prefere resolver a agonia imobiliária em que vivem milhares de portugueses com medidas muito mais do que insuficientes.

De acordo com a Agência Lusa, o valor da avaliação bancária das casas subiu 8% em novembro. O Algarve e Lisboa foram as regiões com a avaliação mais elevada registada nesse mês, segundo números do INE. O valor médio da avaliação bancária das habitações foi de 1312 euros por metro quadrado (m2) em novembro, um acréscimo de 8% face ao mesmo mês de 2018 e de 0,6% face a outubro.

De acordo com o Inquérito à Avaliação Bancária na Habitação do Instituto Nacional de Estatística (INE), por regiões, o valor médio da avaliação bancária mais alto em novembro foi registado no Algarve, com 1736 euros/m2, seguindo-se Lisboa, com 1631 euros/m2.

Em setembro do ano passado, Portugal surgiu novamente no pódio e não pelas melhores razões. Lisboa aparecia como a cidade com maior esforço salarial para pagar rendas na Europa e a sexta no mundo. Segundo o Idealista, uma página especializada no investimento imobiliário, através de dados de um estudo do Deutsche Bank, as famílias portuguesas dedicam grande parte dos seus rendimentos a pagar as rendas das casas onde vivem. Segundo os especialistas, aplicar mais de 30% do salário para este fim coloca em risco a economia doméstica e Lisboa lidera o ranking europeu com uma taxa de esforço superior a 50%.

O VII Estudo do Deutsche Bank ‘World Prices 2019’ permite fazer diferentes leituras sobre as principais urbes do mundo. Desde o ranking do nível de vida, até informação do salário médio, o preço de uma renda média ou o custo que implica passar um fim de semana de férias. Tendo por base alguns dados deste relatório, pode medir-se, por exemplo, a capacidade de um agregado para pagar a casa onde vive e a sua taxa de esforço salarial, ou seja, a parte de salário destinada à renda. Para isto, foi tomado em consideração o ordenado líquido médio mensal e o preço médio do arrendamento de um apartamento com dois quartos (T2). Ao ser um lar onde podem viver duas pessoas, foi calcula- da uma taxa de esforço sobre dois salários completos face ao arrendamento.

Nesse sentido, o estudo concluiu que os habitantes da capital portuguesa têm de dedicar 50,4% do salário para pagar as rendas das casas onde vivem, tendo por base um arrendamento médio de 923 euros. Mas este valor pode aumentar. De acordo com o Dinheiro Vivo, com a transição das rendas antigas a acabar, cem mil famílias vão ter de pagar mais, com a exceção dos inquilinos com mais de 65 anos de idade. “No final de 2020 termina o período transitório para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, a lei Cristas, o que significa que o senhorio fica com mão livre para arrendar a casa duas a três vezes mais”, recordou ao Dinheiro Vivo Romão Lavadinho, presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses. Em causa está o fim do período transitório do NRAU que teve, entre 2012 e 2017, um primeiro travão à subida das rendas e que, depois de um adiamento por três anos, em 2020, vai permitir uma atualização das rendas aos contratos anteriores a 1990.

Não admira, pois, a corrida às casas com renda acessível que começam nos 150 euros e chegam aos 800 em Lisboa. O programa de Renda Acessível da Câmara Municipal de Lisboa teve quase mil registos só no primeiro dia. Para 2020, a autarquia já anunciou que vai disponibilizar mais casas para o programa – pelo menos mais 250, que estarão prontas a habitar no final do primeiro semestre mas as soluções apresentadas pela autarquia e pelo governo são claramente insuficientes e não resolvem o problema de raíz.

A luta pela habitação em Berlim

Em Berlim, o governo local foi mais longe e aprovou uma medida para congelar as rendas por um prazo de cinco anos, a partir de 2020, em resposta aos protestos dos residentes da capital alemã, onde cerca de 85% da população arrenda casa. De acordo com o Jornal de Negócios, em 2015, o governo central já tinha avança- do com uma limitação às rendas em algumas das principais cidades da Alemanha, impedindo as rendas dos novos contratos de ultrapassarem em mais de 10% os valores dos contratos anteriores para as mesmas casas.

Desde 2008, cerca de 40 mil residentes saíram de Berlim, num período em que as rendas mais do que duplicaram, de acordo com um estudo do portal de imobiliário Immowelt. O congelamento das rendas só entrará em vigor em 2020, mas terá efeitos retroativos a 18 de junho deste ano, naquela que será uma tentativa do governo berlinense – formado por uma coligação entre o SPD, os Verdes e o Die Linke – de impedir que os senhorios aumentem as rendas an- tes de a nova regra entrar em vigor.

Mas o governo local foi ainda mais longe e anunciou em outubro que vai investir cerca de 920 milhões de euros para adquirir quase 6000 casas que, em tempos, foram construídas como habitação social, mas que, entretanto, passaram para as mãos de privados e são agora propriedade de uma imobiliária. Esta é mais uma medida drástica para tentar travar o aumento desenfreado das rendas na capital alemã, que, só desde 2017, aumentaram em mais de 20% e desde 2004 subiram qualquer coisa como 120%.

Em abril de 2019, a revolta contra a especulação imobiliária levou milhares de pessoas às ruas de Berlim, num protesto que ficou marcado pela exigência de que a autarquia expropriasse a propriedade dos senhorios que tivessem mais de três mil casas. O objetivo era atacar também o coração da imobiliária Deutsches Wohnen, a mais significativa proprietária com cerca de 111.500 habitações na capital da Alemanha, num valor de mercado estimado em 15,2 mil milhões de euros. De acordo com uma sondagem elaborada pelo Instituto Civey, 54,8% dos participantes estava a favor da expropriação. Cerca de 34% rejeitava-a e 10,9% mostrava-se indeciso.

Segundo o Contacto, os inquilinos dos edifícios mais famosos da Karl Marx Allee, grande avenida que atravessa Berlim pelos distritos de Mitte e Friedrichshain-Kreuzberg, mobilizaram-se para arruinar os planos da Deutsche Wohnen. A empresa pretendia comprar 700 apartamentos em vários dos famosos blocos de arquitetura comunista. Contudo, os moradores forçaram a intervenção das autoridades porque os edifícios estão numa zona de grande pressão imobiliária e, nesses casos, fica salvaguardada legalmente a possibilidade de compra por parte do Estado. Desses apartamentos, 80 vão ser adquiridos pela autarquia que os vai pôr sob gestão da empresa pública WBM. Dos outros 675, cerca de 40% vão passar para as mãos da companhia pública Gewobag. A partir de agora, os inquilinos continuam a pagar a renda que, na verdade, é uma devolução em mensalidades do dinheiro que levou à compra pública dos apartamentos.

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