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Orçamento dá mais ‘borlas’ às grandes empresas

O Orçamento do Estado para 2026 é criticado por sindicatos e movimentos sociais que acusam o governo de querer beneficiar, uma vez mais, os grandes grupos económicos e financeiros. Através da receita e da despesa, o executivo liderado por Luís Montenegro decidiu dar ‘borlas’ às principais empresas e, em muitos casos, desinvestir nos serviços públicos enquanto se promove o setor privado.

Com o debate mediático a adjetivar o OE de mais técnico e menos político, o economista Tiago Cunha considera que o objetivo era “facilitar a aprovação por parte de algumas forças” e “despolitizar o próprio OE”, algo que considera impossível, uma vez que é um documento que “traduz opções políticas” e não algo “quase inócuo” como se tratasse de contabilidade ou aritmética. De acordo com Tiago Cunha, é precisamente no OE que se espelha, as opções do governo, “do ponto de vista das dotações financeiras”, e entende que o executivo até pode, relativamente à fiscalidade, não introduzir na lei que acompanha o OE as alterações ao nível dos impostos, contudo, é “impossível que este não espelhe as consequências dessas mesmas opções”. Para exemplificar, recorda que o governo prevê no OE, através do seu relatório, “uma perda de 300 milhões de euros com a redução de um ponto percentual do IRC”. O orçamento “espalha aquilo que são as opções políticas deste e de outros governos”, sublinha. “Não há forma de contornar isto”.

Relativamente ao conteúdo do documento, o economista diz que se pode abordar o OE pela perspetiva da despesa e, nesse sentido, destaca que se continua a verificar que “uma boa parte do dinheiro dos impostos que todos pagamos continua a ir para os benefícios fiscais para as grandes empresas”. E apresenta mais um exemplo: “este orçamento prevê 1,7 mil milhões de euros de benefícios fiscais em IRC e aquilo que estas estatísticas dos benefícios fiscais em IRC nos dizem é que 1% das empresas se apropria de mais de 1,7 mil milhões de euros”. Simultaneamente, ainda ao nível da despesa, há uma subida de gastos em parcerias público-privadas de 25% em relação ao ano passado e também uma importante subida no que diz respeito à defesa. No caso da saúde, o aumento é apenas de 1,5% que, no contexto da inflação prevista de 2,1%, se traduz “numa redução do orçamento para o setor”.

Do lado da receita, Tiago Cunha recorda que grande parte da receita fiscal vem de impostos indiretos, lembrando que penalizam quem menos tem e aliviam quem mais tem. E essa solução tem vindo a aumentar. “Todos pagam por igual o IVA, o dono da SONAE e o trabalhador da reposição na mesma empresa. E é nestes impostos indiretos que está a maior parte da receita do OE”.

Em relação às necessidades dos trabalhadores e do país, lembra que a descida de 300 milhões de euros no IRC “dava para contratar mais de 5 mil médicos de família”. Lembra também os vários mitos criados. Um deles, defende, é o de que Portugal tem uma despesa pública muito elevada. “Não é verdade. A nossa despesa pública, em relação, por exemplo, à média dos países da OCDE, está mais de 6 pontos percentuais abaixo. E, quando falamos de despesa pública, estamos a falar de direitos sociais que são ou não são cumpridos por essa via. Não é uma coisa de menor importância”, considera. Simultaneamente, fala das novas regras da União Europeia e de uma variável que tem sido posta em causa como é o caso do investimento público, também muito abaixo da média europeia. Hoje, esse investimento é insuficiente para cobrir o desgaste dos materiais, aquilo a que se chama consumo de capital fixo. “Onde hoje seria preciso substituir uma telha, amanhã vai ser preciso substituir todo o telhado”, alerta. Nesse sentido, os excedentes orçamentais que têm servido para abater a dívida vão deixar as gerações futuras “com maiores dívidas, maiores encargos, serviços públicos degradados”. O objetivo, considera, é promover o negócio privado. Outro dos pontos negativos do documento é a previsão de que os trabalhadores da administração pública apenas consigam manter o seu poder de compra, lembrando a perda acumulada de poder de compra ao longo das últimas décadas. “Para aqueles que são fundamentais para garantir os nossos direitos na educação, na saúde, na segurança social, na justiça, no poder local democrático, pessoas que garantem os direitos que conquistámos e que são muito necessárias, continua a não ver os seus salários efetivamente aumentados”.

“Não vamos dar descanso ao governo”

O coordenador da Frente Comum, estrutura que representa os sindicatos dos trabalhadores da Administração Pública da CGTP-IN, não é simpático com o orçamento aprovado pelos partidos que compõem o governo e viabilizado com a abstenção decisiva do PS. Sebastião Santana diz que o documento pende para o lado do capital “de uma forma muito evidente” e lembra também os benefícios fiscais diretos em sede de IRC de 300 milhões de euros para as grandes empresas. Para além das benesses aos principais grupos económicos e financeiros, denuncia que metade do orçamento para a saúde vai para os privados. O aumento de cerca de 14% no orçamento para a defesa é também motivo de crítica por parte do dirigente sindical que antecipa que essa subida não se vai refletir nas carreiras militares e nos seus trabalhadores.

Parece evidente para os sindicatos da CGTP-IN que o governo visa a degradação dos serviços públicos. “Está aos olhos de toda a gente. Este governo optou por degradar serviços públicos e não é possível, com estas políticas de investimento reduzido e de desinvestimento, esperar bons resultados. O objetivo é entregar setores estratégicos ao setor privado”, afirma. “Não é que os serviços públicos não consigam dar resposta, é uma opção. Assistimos à proliferação de serviços privados de saúde em todo o país ao mesmo tempo que vemos o número de camas que têm sido destruídas no Serviço Nacional de Saúde reaparecerem, como que por milagre, no setor privado”.

Para Sebastião Santana, parece evidente que há uma concertação para favorecer o crescimento da oferta privada e o mesmo acontece também no setor da educação. “Com cada vez mais colégios privados, com a insistência da lógica de as pessoas poderem escolher qual o melhor sítio para ter os seus filhos a estudar, escondendo o que é uma evidência: é que não há problema nenhum com haver opção por privados”, recorda. Para o coordenador da Frente Comum, o serviço público de educação deve ser assegurado para todos “em iguais condições”, um ensino que “seja capaz de dar resposta às necessidades do país”, sublinhando que “não é nada disso que se faz”. Entende não haver uma lógica de “adequar os recursos às necessidades do país” até o 12.º ano, como depois no ensino superior e na investigação. A lógica do presente, entende, é adequar os recursos às “necessidades das empresas”.

Depois de uma greve a 24 de outubro, que avalia como uma das maiores dos últimos anos, com muitos setores a aderir em peso, Sebastião Santana aponta a luta como o único caminho. “O que vamos fazer é continuar a dar combate não só ao OE mas também às políticas que lhe são subjacentes. Começamos desde já no próximo dia 8 de novembro com a participação também dos sindicatos da administração pública na marcha contra o Pacote Laboral, que é uma questão que diz respeito a todos os trabalhadores, não apenas aos trabalhadores do setor privado. Portanto, não vamos dar descanso ao governo”.

Habitação sem solução à vista

André Escoval é um dos porta-vozes do movimento Porta a Porta, uma das organizações promotoras dos recentes protestos pela habitação. Sobre o documento do OE apresentado pelo governo entende que “agrava as dificuldades daqueles que precisam de casa para viver no país” porque “volta a colocar o Estado como elemento dinamizador do mercado na ótica daqueles que lucram com a casa enquanto produto especulativo” e “retira o Estado das necessidades urgentes do setor”. Nesse sentido, considera que o OE prevê “a arrecadação de receita com a venda de património público sem atribuir do ponto de vista do investimento os recursos necessários para que o Estado possa intervir, ou com medidas de emergência, num quadro do reforço dos apoios pontuais, ou de forma mais estruturada, investindo no aumento do parque público de habitação”. Acrescenta ainda que o documento “não afeta a receita necessária para que estas políticas se possam desenvolver no país”. Carateriza o momento como grave e que esta estratégia é uma política de “afronta” contra quem está com “o problema às costas”, é uma política que coloca “os interesses dos fundos imobiliários, dos especuladores, dos grandes proprietários” antes do interesse “daqueles que precisam do direito à habitação, de uma casa para poder habitar”.

Para o porta-voz do movimento, não é aceitável que não haja planos do governo para aumentar o parque público de habitação acima dos 2%. “Havia, inclusive, fundos afetos ao aumento do parque público de habitação pela via do PRR que foram retirados no último pedido de revisão de fundos à União Europeia. Portanto, aquilo que podia ser um indicador do aumento de investimento de dinheiros públicos no aumento do parque público de habitação, com a retirada destes fundos europeus, que nem sequer surgiam pela via do OE, revela um desinvestimento no parque público de habitação”. Denuncia ainda que o mesmo orçamento “que prevê arrecadar receita com a venda de património público” é o mesmo “que baixa impostos para aqueles que lucram com a habitação”.

Como no caso dos sindicatos, também o porta-voz do movimento Porta a Porta anuncia que as políticas do governo serão combatidas: “a luta vai subir de tom”.

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