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Do sonho americano ao pesadelo: o calvário de um imigrante venezuelano

A Voz do Operário conversou com Pedro Escobar, um imigrante venezuelano detido e deportado pelos Estados Unidos para uma prisão em El Salvador. Uma história que revela os horrores da política norte-americana contra os trabalhadores imigrantes e que só foi possível acabar, no caso destes 252 venezuelanos, com a intervenção do governo de Nicolás Maduro através de uma troca de prisioneiros com a Casa Branca.

Na manhã do seu aniversário, quando se pôs a pé para trabalhar, em Calexico, nos Estados Unidos, o venezuelano Pedro Escobar não sabia que estava a começar o primeiro dia de longos meses de inferno. Imigrante desde julho de 2024 naquele país, cruzou a fronteira do México legalmente à procura de uma vida melhor.

Depois de asfixiarem economicamente a Venezuela com sanções, os Estados Unidos provocaram a emigração em massa do país sul-americano. Pedro Escobar recorreu ao CBP-1, um mecanismo de entrada que dava acesso ao estatuto de proteção temporária aos venezuelanos, e estava instalado no estado da Califórnia, onde trabalhava para a empresa de transportes SFL até ao dia em que cumpriu 34 anos.

Nessa manhã, a milhares de quilómetros, numa humilde casa na cidade costeira de La Guaira, na Venezuela, Berty Blanco recordava aquele 24 de outubro de 1990 quando dera à luz Pedro Escobar. “Mãe, acabo de me levantar e vou começar a trabalhar”, escreveu-lhe o filho por mensagem. “Que Deus te abençoe, meu filho, feliz aniversário. Tem um bom dia”, recebeu de resposta. Pouco tempo depois, vários agentes do FBI e do ICE entraram nas instalações da empresa e detiveram vários trabalhadores, incluindo Pedro Escobar. Começava um calvário que só acabaria dali a nove meses.

Berty Blanco esteve meses sem notícias do filho.

Enquanto a mãe do imigrante venezuelano estranhava o silêncio do seu filho na caixa de mensagens do telemóvel, Pedro Escobar era interrogado numa esquadra de Calexico. “Acusaram-me de ser membro de um gangue por causa das minhas tatuagens e respondi-lhes que não. Tentaram que lhes desse nomes de pessoas que desconhecia em troca da minha liberdade. Expliquei-lhes que não entrei ilegal no país e que não era bandido”, recordou. Como aconteceu com mais de 400 imigrantes venezuelanos capturados, Pedro Escobar foi acusado de ser membro do gangue Tren de Aragua.

Durante o interrogatório, foi obrigado a assinar uma declaração em inglês, idioma que não entende na perfeição, e não teve acesso a qualquer intérprete ou advogado. Só já no dia é que Berty Blanco soube que o filho estava detido. “Depois deram-me os parabéns e disseram que esta era a minha prenda. De seguida, meteram-nos a todos em camionetas e levaram-nos para uma prisão regional onde nos vestiram uniformes de presidiários”.

Durante cinco meses, de cárcere em cárcere, sem alguma vez ter sido condenado por qualquer crime, Pedro Escobar esteve preso com reclusos condenados a várias décadas de prisão. “Em março deste ano, fui arrancado da cela a meio da noite e, com outros presos, acorrentados uns aos outros, acabei num autocarro com janelas de vidros fumados. Levaram-nos para Phoenix, no Arizona, e subiram-nos a um avião. Havia mais venezuelanos. Era tudo muito estranho, não sabíamos o que estava a acontecer. Dali, voámos para Las Vegas, onde subiram mais venezuelanos. Aconteceu o mesmo quando aterrámos em Washington e Seattle. No Texas, levaram-nos para uma prisão e registaram-nos. Éramos 72 venezuelanos. Quando chegaram os responsáveis, pedimos que nos deportassem para o nosso país ou para o México”.

No dia 14 de março, as autoridades prisionais anunciaram que os imigrantes seriam levados para a Venezuela. A emoção tomou conta dos presos. Não queriam acreditar. Finalmente, iam regressar a casa. Passado uns dias, voltaram a entrar nos autocarros com algemas nas mãos, pés e barriga. Na pista do aeroporto, havia três aviões, dezenas de agentes da CIA, FBI, DEA, repórteres de imagem e gente que Pedro Escobar pensa serem da administração norte-americana.

Mas era tudo mentira. Só se deram conta da farsa quando o avião aterrou não em Caracas como esperavam mas em El Salvador. Meses antes, Donald Trump havia assinado um acordo com o governo salvadorenho em que as autoridades locais aceitavam receber seis milhões de dólares por ano, embora o senador democrata Chris Van Hollen tenha falado em 15 milhões, para recluir nas suas prisões centenas de imigrantes acusados de serem criminosos sem qualquer prova. Foi então que o controverso presidente salvadorenho Nayib Bukele deu a ordem de encarcerar os imigrantes deportados pelos Estados Unidos no Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), um autêntico campo de concentração inaugurado em 2023 com mais de 4 mil presos. Uma outra parte dos imigrantes expulsos por Washington acabaram na base militar norte-americana de Guantánamo, em Cuba.

Regime de terror em El Salvador

Enquanto alguns vizinhos chegam para saudar Pedro Escobar, a mãe, Berty Blanco, recorda que enquanto o filho esteve preso nos Estados Unidos podiam comunicar com regularidade por videochamada. Isso acabou no dia em que foi levado à força para El Salvador. Avisada de que Pedro Escobar ia regressar a casa, apanhou um choque quando descobriu que havia sido encarcerado no CECOT, em El Salvador. “Nunca mais recebemos qualquer notícia dele”, recorda.

Se a experiência da privação de liberdade nos Estados Unidos tinha sido má, Pedro Escobar não sabia o que o esperava em El Salvador. Encerrados no avião, receberam duas fatias de pizza cada um, e foi então que começou o terror. Era já noite e começaram a chegar viaturas militares, blindados da polícia de choque, tanques de guerra, motorizadas. Havia helicópteros e drones a rondar a área. Um oficial do departamento de fronteiras de El Salvador registou-os dentro do avião e disse-lhes que se não saíssem do avião a bem que saíriam a mal. Um por um, desceram as escadas onde no final havia um autêntico corredor de soldados e polícias.

“Agarraram-me pela cabeça e bateram-me como se fosse uma piñata. Recebia golpes em todo o corpo por dezenas de agentes. Depois, atiraram-nos para dentro de um autocarro como se fossemos um saco de batatas. Não queriam saber se podíamos partir os dentes, o nariz, não queriam saber. Dentro do autocarro, não nos deixavam olhar para a janela. Íamos algemados aos assentos e tínhamos de ter a cabeça baixa. Durante a viagem, batiam-nos. Acabei por desmaiar com tantos murros e pontapés”, descreve Pedro Escobar.

Presos obrigados a fazer exercício no CECOT.

A recuperar de uma operação à perna por um antigo acidente de mota, foi arrastado pelo chão à entrada do CECOT. As autoridades salvadorenhas raparam o cabelo aos detidos e despiram-nos por completo à frente de fotógrafos, câmaras de vídeo e agentes prisionais. Depois, foram encarcerados em módulos diferentes. O ambiente era de absoluto horror. “Havia muita gente a gritar pelo pai e pela mãe, havia pessoas que tinham a cara desfeita. A um amigo partiram-lhe os dentes, outro chegou em muletas e foi agredido na mesma. Conheci um rapaz que estava doente dos rins e que tinha medo de morrer ali. Quando nos meteram numa fila sem qualquer pêlo na cabeça ou na cara não nos reconhecíamos uns aos outros”, recorda. Alinhados, ouviram as palavras do diretor prisional, de acordo com Pedro Escobar: “Vamos encarregar-nos de que vocês não comem qualquer tipo de carne. A maioria de vocês vai sair daqui aos 90 e aos 90 já estarão mortos. Bem-vindos ao inferno”.

A luta pela libertação

Na Venezuela, uma irmã de Berty Blanco juntou-se a outros familiares dos 252 imigrantes venezuelanos presos no CECOT, em El Salvador, e organizaram-se para exigir a libertação. Simultaneamente, as autoridades venezuelanas, que tinham condenado com veemência este ataque aos direitos dos seus cidadãos, tentavam encontrar soluções para conseguir o seu repatriamento. Nicolás Maduro considerou as deportações um “sequestro” e “desaparecimento forçado” e exigiu a libertação imediata dos imigrantes, lembrando que a maioria não tinha sequer antecedentes criminais. Nesse sentido, Caracas levou o caso às Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), pedindo uma investigação sobre os abusos levados a cabo no CECOT. Com o apoio do governo venezuelano, os familiares dos imigrantes, com advogados e organizações sociais, apresentaram uma denúncia ao Tribunal Supremo de El Salvador.

Por sua vez, nos quatro meses e dois dias que estiveram encarcerados no CECOT, Berty Blanco entrou numa profunda tristeza. Revela que não conseguia sair de casa. Deixou de visitar amigos e familiares e afogou a sua mágoa numa obsessão permanente por encontrar notícias sobre o que acontecia em El Salvador. “Não conseguia dormir nem comer. Pensava que o meu filho tampouco dormia e comia. Rezava a todos os santos, acendia velas, pedia a Deus que o libertasse”, lembra. De lágrimas nos olhos, denuncia que o seu filho foi muito maltratado. “Verbal e fisicamente. Fizeram-lhe muito mal. O presidente Trump não sabe o mal que fizeram a todos estes rapazes”.

Pedro Escobar com a mãe à porta de casa em La Guaira, Venezuela.

Foi já em julho que a Venezuela conseguiu um acordo com a Casa Branca para trazer os 252 cidadãos de regresso ao seu país. Caracas ofereceu 10 cidadãos norte-americanos presos na Venezuela, muitos deles acusados de espionagem, em troca da liberdade dos imigrantes.

“Um dia, acordaram-nos e começámos a ouvir muitos autocarros. Disseram-nos para tomarmos banho e um padre salvadorenho, que também estava preso, veio despedir-se de nós. Gostávamos de estar com ele porque era o único momento em que sabíamos que ninguém nos ia bater. Alegrámo-nos porque íamos sair daquele inferno mas não estávamos seguros do que ia acontecer. Eu parti no último autocarro e emocionei-me quando ouvi a pronúncia venezuelana do funcionário que nos veio buscar. Quando vi a bandeira da Venezuela no avião, chorei muito. Durante a viagem, cantávamos, ríamo-nos. Finalmente, estávamos livres”, lembra Pedro Escobar.

No dia seguinte, Berty Blanco pôde abraçar o seu filho, que chegou numa cadeira de rodas com o apoio da Cruz Vermelha, devido à ferida na perna. Foi uma emoção que jamais esquecerá e faz questão de agradecer o papel de Nicolás Maduro e do restante governo na libertação dos imigrantes. Algo que Pedro Escobar também partilha. “Creio que fizeram todos os possíveis para conseguir o nosso regresso”. Já a mãe, apesar da felicidade, não esconde a mágoa. “Que raiva me dão estes gringos. Acham que podem fazer o que lhes apetece com qualquer pessoa”.

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