Sobre a problemática das bolseiras e as dificuldades que têm na publicação dos seus trabalhos, na pandemia isso foi ainda mais evidente, com uma sobrecarga que limitou a produção científica das mulheres, o que pensa disto?
Isso é um assunto que nessa altura foi agravado. Há um estudo que levou à conclusão de que naquele período da pandemia os investigadores homens tiveram mais produtividade. O facto de ficarem confinados deu-lhes mais produtividade e às mulheres deu menos produtividade. Isso é curioso porque até leva a pensar em coisas que, como fomos todos confrontados com a necessidade de ficarmos em casa, a necessidade de pararmos, de delimitarmos, digamos assim, as nossas atividades e de como isso beneficiou a investigação dos homens e prejudicou a investigação das mulheres.
Mas a principal questão tem a ver com a forma como as mulheres desenvolvem esta atividade no sentido em que o problema é justamente não haver carreira. Portanto, nós hoje temos muitas mulheres a fazer investigação, um dado que se alterou significativamente nos últimos 50 anos. Mas as mulheres continuam a acumular estas outras tarefas e, portanto, para muitas mulheres o trabalho não acaba às 5 da tarde e estão limitadas com a assistência à família durante o dia… E, portanto, isso condiciona necessariamente.
Nós quando discutimos esta questão não pensamos que defender os direitos das mulheres seja que elas possam passar a trabalhar sem horários como muitos homens de investigação trabalham. E muitas mulheres trabalham, evidentemente, na investigação também sem horários. E isto está relacionado com a precariedade. Há pessoas na investigação que têm períodos sem rendimentos e sem qualquer tipo de vínculo e continuam a fazer investigação à espera do resultado do próximo concurso. A seguir a esses, estão as bolseiras com um vínculo que nem sequer concede a condição de trabalhador.
Portanto, esta precariedade a que estes bolseiros estão sujeitos leva a que se sinta esta necessidade de estar permanentemente a trabalhar. Estas pessoas estão neste nível de precariedade, têm um limite, o fim da bolsa para entregar os seus trabalhos e, portanto, esta ideia de que têm de estar sempre a trabalhar é uma ideia que penaliza depois as mulheres que não podem estar sempre a trabalhar porque têm de prestar outro tipo de cuidados à família. Isto faz com que muitas mulheres neste setor adiem muita a decisão de terem filhos porque é sempre um outro momento de estabilidade que vai permitir essa escolha.
Num quadro social onde as mulheres continuam a desempenhar muito mais tarefas domésticas e relacionadas com a parentalidade do que os homens, como é que se concilia a maternidade e a investigação num contexto precário como o das bolseiras?
Primeiro, é preciso uma grande rede de apoio financeiro e logístico. Porque isso diria que é uma coisa também, mais uma vez, transversal a quem escolhe esta via profissional. Portanto, para uma pessoa que tem filhos, como é que se pode optar por um percurso que nos vai obrigar a estar períodos sem rendimentos? Isto não é só mais tarde, quando estamos à espera de financiamento, é logo desde o início quando nos candidatamos à bolsa de doutoramento. Se temos o financiamento da FCT, sabemos que temos bolsa. Desde o momento em que assinamos o contrato e o momento em que recebemos, às vezes são cinco meses. No doutoramento, à partida, já estamos a considerar que é uma pessoa que, de alguma forma, conseguiu ter uma rede de apoio que permitisse manter-se aquele tempo sem rendimentos. Acabando o doutoramento, entrega-se a tese, fica-se sem bolsa e às vezes está-se quatro ou cinco meses à espera da data da defesa da tese. Há pessoas que não tendo a rede de apoio fazem as suas opções e têm que condicionar os seus horários para estar com as crianças. E digo os fins de tarde, digo os fins de semanas, digo os períodos em que as pessoas têm de estar fora de Portugal para as missões, para os trabalhos de campo, caso seja esse o seu caso, para as conferências… Portanto, há aqui uma série de coisas que só é possível fazer se houver avós, tias, amigas, pessoas que partilhem essa coisa de criar as crianças.
As mulheres são simultaneamente cada vez mais a franja mais qualificada da sociedade, mas simultaneamente é a mais mal paga. O Estado e as empresas continuam de costas voltadas para as mulheres?
Eu diria que é a eterna questão de nós conseguirmos, por determinadas circunstâncias, das pessoas e dos trabalhadores, explorar mais uns do que outros. Ou seja, aqui não estão de costas voltadas para as mulheres, como se não estivessem de costas voltadas também para os homens trabalhadores. Os salários baixos em Portugal são generalizados. Historicamente, as coisas foram evoluindo e permitiu-se a possibilidade de pagar menos às mulheres com a necessidade do patrão de acumular mais e distribuir menos. Também se pagava menos às crianças quando trabalhavam. As mulheres estão cada vez mais qualificadas e mesmo assim continuam a receber menos do que os homens e isso mostra que há aqui uma alteração histórica, que tem a ver com as condições hoje do acesso à formação. E, portanto, aqui neste momento, há uma contradição.
No campo do ensino superior, que tem muito mais mulheres com formação, há milhares de mulheres docentes, mas depois há muito menos mulheres nas direções das próprias instituições. Não é porque achemos que as mulheres devam ser todas diretoras ou que vão ser melhores diretoras que os diretores. Mas há claramente um desequilíbrio, não é? Falávamos das mulheres que ficaram mais tempo em casa com as crianças, das mulheres que não progrediram na carreira da mesma forma, das mulheres que não têm acesso a esses mecanismos de poder e isso também diz muito sobre condicionamentos à democracia das instituições de ensino superior.
Há um feminismo que consegue pôr todas as questões em cima da mesa menos a de classe. De que forma é isto prejudicial à luta das mulheres?
O 25 de Abril transformou a vida de todas as mulheres em Portugal, seja as mulheres da aristocracia, seja as mulheres trabalhadoras. O 25 de Abril pela sua natureza de projeto de transformação contrário ao regime fascista em Portugal veio transformar as coisas para todas as mulheres, ou seja, mudou tudo para todas as mulheres. Quando se diz que mudou tudo para todas as mulheres estamos a dizer que as mulheres no seu todo de alguma forma beneficiaram com a democracia em Portugal. E isso não é menos importante. Mas a verdade é que existe, historicamente, em diferentes grupos, a ideia de que esta coisa de se poder aceder ao poder, aceder ao privilégio, aceder ao grupo dos privilegiados deve ser para todos os grupos oprimidos, ou seja, que uma mulher que é da burguesia deve poder mandar como os homens da burguesia. Isso é legítimo. É uma luta legítima das mulheres da burguesia. Mas isso não é aquilo que resolve os problemas de desigualdade nem os problemas de exploração para quem vive do seu trabalho, que é a maioria das pessoas. A luta da maior parte das mulheres, que são as mulheres trabalhadoras, não é essa luta. Não estamos a lutar para podermos ser nós a beneficiar dessa exploração.
Vemos um avanço do neo conservadorismo sobre a condição das mulheres. Das limitações aos direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, à crença que as mulheres não têm filhos porque não querem ser responsabilizadas pela baixa natalidade ou desestruturação da família tradicional. Como observas essas narrativas de culpabilização das mulheres?
Haver quem considere que a mulher tem um papel na sociedade relacionado com a sua capacidade reprodutiva é problemático. É evidente que é um confronto ideológico. Há pessoas que acham que as mulheres têm essa responsabilidade, têm de estar em casa, têm de cuidar dos filhos e que, portanto, biologicamente elas é que estão adaptadas não só para os ter como para cuidar deles e que os homens terão outros papéis. Mas depois há outro tipo de coisas que se deve discutir, que tem a ver com as políticas de natalidade, e esses são os mesmos que depois negam direitos de parentalidade, negam salários dignos aos trabalhadores e às mulheres, particularmente. Negam redes de creches públicas. Esse discurso está massificado nos Estados Unidos, não há direitos de licenças de maternidade, não há direito à saúde, não há direito à educação, não há direito a nada, e depois como é que esse discurso é proferido pelos mesmos que acham que a natalidade está a acabar por culpa das mulheres? É evidente que as mulheres não têm nenhum tipo de missão e de papel obrigatório do ponto de vista da reprodução; nem as mulheres nem os homens já agora.
A luta das mulheres deve integrar também os homens?
As mulheres precisam de espaços para discutir e, portanto, têm que ter a liberdade para criar esses espaços. Também é parte dos homens juntarem-se à luta das mulheres, ter sensibilidade de que muitas vezes as mulheres não conseguem intervir da mesma forma que os homens, num espaço de expressão como um debate quando há 10 homens a falar e uma mulher a falar e as outras todas caladas. Muitas vezes há determinadas que são inibidoras da participação das mulheres, já para não falar das mulheres que estão em casa e, portanto, os homens é que estão mais nesses espaços de discussão e espaços sociais. A luta das mulheres é a luta das mulheres, as mulheres é que têm que definir como é que se organizam e em que moldes é que se organizam. Mas é evidente que é uma luta que passa pela discussão com os homens, porque, enfim, passa pela discussão com todos. Com os homens que estão lado a lado com as mulheres e que também sofrem, de certa forma, com o facto de o mundo ser desta forma. Mesmo isto da ideia dos papéis da mulher e dos homens. Eu acho que a luta das mulheres nunca poderá ser bem sucedida se não houver uma grande transformação das mentalidades e dos valores e que isto, obviamente, se deve fazer em discussão com os homens, sobretudo aqueles que estão do lado de cá da barricada.
Como te sentiste enquanto mulher quando soubeste do caso de Giselle Pelicot, violada em grupo durante anos (incluindo pelo marido), e a notícia de que há canais no Telegram em Portugal onde dezenas de milhares de homens trocam fotos íntimas de mulheres sem autorização?
Isto é um caso muito chocante. Ou seja, é um caso que tem aqui uma série de pormenores que são chocantes, mesmo para quem já possa ter uma ideia de que estas coisas são muito comuns e generalizadas. Portanto, estes pormenores é que acho que foram bastante chocantes, desse caso específico e dessas redes. O facto de isto surgir agora é importante porque leva-nos a pensar algumas coisas que se calhar há 10 anos não íamos pensar e que tem a ver com estas lógicas de que o problema são os imigrantes. Não é. E há aqui questões psicológicas muito importantes. Eu acho que isto é muito complexo. É muito difícil pensar sobre isto porque eu quando vi pela primeira vez essa coisa deste caso em França, não fui logo ler tudo. Há aqui uma dificuldade, às vezes, mesmo de uma pessoa digerir… Haverá aqui, provavelmente, algum tipo de distúrbio. Isto é muito mais complicado do que apenas a relação que existe entre os homens e a pornografia, por exemplo, que já é problemático. Ou entre os homens e a prostituição, que também é muitíssimo problemático. Mas esta forma de associação em torno deste objetivo é muito preocupante e, de facto, tem a ver com a relação com a sexualidade. Ficamos a pensar até do ponto de vista das gerações. Como é que isto se pode abordar do ponto de vista da sociedade como um todo? Mas é, de facto, uma coisa muito complicada, não sei quais são as respostas senão transformar tudo, todo o sistema e a forma como se lida com a sexualidade desde muito cedo.
A violência doméstica continua a ser o crime mais praticado em Portugal. Contudo, parece que não é uma prioridade quando se fala de criminalidade. Há que pôr o combate a esta forma de violência como prioridade?
Mais uma vez, é uma criminalidade que não tem nada a ver com a imigração. E que está mesmo aqui na nossa casa, digamos assim, da coisa mais íntima e no sítio onde as mulheres deveriam estar mais protegidas. Há aqui um problema que muitos fatores relacionados com integração social, com o trabalho, com o consumo de substâncias, com questões psicológicas mais profundas. Não me parece que seja um tipo de criminalidade que deixe de existir porque passa a haver penalização. É evidente que há aqui problemas muito objetivos quando essas mulheres já denunciaram uma ou duas vezes e depois continuam a estar expostas àquela pessoa e não conseguem que a justiça as proteja e depois acabam assassinadas. Mas isso, digamos, é o fim do problema. É o último momento do problema. O problema começa muito antes e é aí, acho, que deveria haver mais meios para se conseguir pensar de forma mais profunda em relação às origens e aos fatores que levam estas situações a acontecer.