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Nos bastidores do maior jornal Operário

Foi a 11 de Outubro de 1879, há 145 anos, que se publicou o primeiro número do jornal A Voz do Operário. “O homem por ser operário não é escravo”, proclamara-se no primeiro editorial como um grito de revolta de operários manipuladores de tabaco que, contribuindo para a maior fonte de riqueza do país dos séculos XVIII e XIX, tinham como paga a miséria, pelas péssimas condições de trabalho, pela doença profissional de que muitos padeciam e pelo magro salário.

Por proposta do operário tabaqueiro Custódio Gomes, nasceu a 11 de outubro de 1879 o jornal A Voz do Operário.

Raul Esteves dos Santos (1889-1954), escritor, jornalista e diretor do Jornal A Voz do Operário entre 1931 e 1933 e de 1945 a 1947, citado no Livro dos 135 anos desta instituição, da autoria de Alberto Franco, traça o quadro das vidas de famílias operárias que geravam a riqueza que era acumulada à fortuna dos patrões, fossem eles a Coroa portuguesa – sobretudo na década de 20 do século XVII, assumindo o monopólio daquela indústria – ou patrões privados a quem a Coroa, a partir da década de 30 do mesmo século, arrendava o negócio, a troco de uma renda anual que continuava a dar ao Estado a sua receita mais choruda.

Segundo o Estudo da História Empresarial de Portugal, Tabacos, de Ana Tomás e Nuno Valério, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, “desde a implantação da Monarquia Constitucional, as receitas dos tabacos mantiveram regularmente um peso da ordem de 10% nas receitas efetivas do Estado português até às vésperas da Primeira Guerra Mundial”.

Era esta gorda receita produzida, até 1865, por 1235 operários, incluindo crianças, da Companhia de Fábrica de Tabaco de Xabregas, segundo o Inquérito Industrial de 1852, que das 7 da manhã em jornadas de 14 a 15 horas diárias, trabalhavam compulsivamente em silêncio, pagando a ousadia de o quebrar com umas poucas chibatadas – “sendo rapaz, levava com umas cordas alcatroadas, e cheia de nós, e outras vezes com uma chibata”, conta Raúl Esteves dos Santos – manipulavam diariamente matéria-prima nociva para a sua saúde, desenvolvendo doenças pulmonares como a tuberculose. Os “Escravos Brancos”, assim se chamavam os que trabalhavam nas oficinas que produziam rapé, sangravam dos olhos com a poeira da moagem do tabaco.

Como se refere o livro de Alberto Franco, citando de novo Raul Esteves dos Santos, com a liberalização surgiam mais fábricas, e muitas “fechavam tão depressa como abriam”, somando o desemprego à cartelização dos salários de miséria. Em 1881, contavam-se já 4021 operários originárias de meios rurais, acantonados em “Vilas, ilhas pátios e bairros insalubres das zonas pobres de Lisboa”.

Era esta a miserável vida de quem construía as fortunas de algumas famílias, a do José Ferreira Pinto Basto, conde de Farrobo, a do Joaquim Ferreira dos Santos, conde Ferreira, João Paulo Cordeiro. E se na verdade também havia lugar à filantropia, como João Paulo Cordeiro que “reservou parte da sua herança para o financiamento de uma caixa de beneficência destinada aos tabaqueiros”, ou o conde Ferreira, instituindo “120 escolas e um hospital para doentes mentais” no Porto, ou José Maria Eugénio de Almeida “cedendo à Câmara lisboeta os terrenos do futuro Parque Eduardo VII”, ou o caso de 6 grandes negociantes tabaqueiros que financiaram o Teatro de S. Carlos, bem se pode dizer que tudo isto se deve aos operários do Tabaco que em condições de miséria geravam dinheiro suficiente até para a filantropia.

Segundo Vítor de Sá, (“Esquema Histórico do Movimento Operário Português”) que, “Relativamente ao Movimento Operário, a burguesia adopta, em Portugal, em meados do século, uma política de dureza legal combinando com o fomento da filantropia”, proíbe legalmente e reprime as greves, mas “promove e enquadra o associativismo operário (…) procurando atrair a si a classe operária e suscitar-lhe objetivos meramente reformistas e mutualistas”.

Assim acontece em 1839 com a Sociedade dos Artistas Lisbonenses, de Alexandre Fernandes da Fonseca, ou em 1840 com o “Projecto de Associação para o Melhoramento da Sorte das Classes Industriosas” de Silvestre Pinheiro Ferreira.

“Expressões desta mesma natureza tiveram os jornais dos primeiros setores profissionais que tomaram a iniciativa de fundar órgãos próprios”, sustenta José Tengarrinha (“História da Imprensa Periódica Portuguesa”), dando como exemplo “O Eco Metalúrgico (Lisboa, 1850), Jornal da Associação Fraternal dos Sapateiros e Artes que Trabalham o Cabedal (Lisboa, 1853), Jornal da Associação dos Professores (Lisboa, 1856) Associação Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas (Lisboa, 1858) e o Jornal do Centro Promotor de Melhoramento das Classes Laboriosas (Lisboa 1853) que teve considerável expansão e influência, como suporte da acção de natureza mutualista que era a dessa associação”. Mas, acrescenta Tengarrinha, é a partir de 1871 que o Movimento Operário Português, abandonando a fase mutualista, entra em ruptura com a sociedade” e, precisa Vítor de Sá, a partir de 1870, “por influência da Associação Internacional dos Trabalhadores, A.I.T., (Londres 1864)” e, no ano seguinte pelos reflexos da Comuna de Paris que “a agitação operária recobra forças em Portugal e rompe com o paternalismo burguês”.

Citando, mais uma vez José Tengarrinha, “Nesta fase, os jornais operários tomam nova feição, orientados por duas preocupações centrais: a doutrinação em torno da libertação operária e o apoio às lutas operárias, quer defendendo a sua justeza, quer lançando campanhas de ajuda material e moral aos grevistas”. Só nesta altura os operários tomam consciência da importância da imprensa “como instrumento da sua organização e da sua luta”. O Pensamento Social (Lisboa, 1872) que teve na sua redação a participação de José Fontana, Antero de Quental, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Azedo Gneco, Eduardo Maia e Nobre França, “serviu de órgão fundador da Internacional”. Refere Vítor de Sá tratar-se de “uma publicação periódica que exibe no seu cabeçalho uma legenda típica da Internacional: Não mais deveres sem direitos, não mais direitos sem deveres”. E que, nesse mesmo jornal, no mesmo ano, irá aparecer a primeira tradução portuguesa do Manifesto do Partido Comunista.

Mas, refere José Tengarrinha, “o jornal que exerceu influência mais direta, mais longa e mais ampla sobre as lutas operárias foi A Voz do Operário (Lisboa, 1879, semanal) órgão da Associação dos Tabaqueiros de Lisboa que desempenhou de certo modo a função de central das associações operárias.” Acrescenta Tengarrinha, “a sua tiragem atingiu 40.000 a 50.000, o que se multiplicarmos por um índice médio mínimo de 4 a 5 leitores por exemplar, nos dará a noção da sua larga audiência”, conclui. Para se perceber a dimensão da importância de A Voz do Operário, “em fins de 1869”, citando Tengarrinha, “publicavam-se em Lisboa, diariamente, 50.000 exemplares de jornais, dos quais 17.000 pertenciam ao Diário de Notícias; Em 1885 a tiragem média deste jornal [DN] sobe para 26.000 exemplares.

A crescente hostilidade dos jornais conservadores e uma certa indiferença face ao movimento reivindicativo suscita por parte do movimento operário a necessidade de desenvolver a sua própria imprensa, é essa também uma das razões da criação do jornal A Voz do Operário.

Refere Tengarrinha que “O Diário de Notícias, por exemplo, em geral descrevia objetivamente as lutas operárias, mas com frequência desenvolvia comentários desfavoráveis. O Diário Popular, um dos mais influentes jornais lisboetas entre 1886 e 1896, manifesta por vezes simpatia pelos operários, mas não apoia as suas reivindicações. O Jornal de Comércio (Lisboa 1853) é abertamente desfavorável com apelos à boa ordem”. Se há jornais Republicanos, como O País, de Alves Corrêa e Pinheiro Chagas, onde se manifesta, por vezes, uma “reservada simpatia”, outros há, como o Século, jornal Republicano de maior expansão, “em que se nota uma evolução no sentido de desapoio e até hostilização das lutas operárias”, refere Tengarrinha. Talvez isso explique, sustenta, “o crescente distanciamento entre o movimento operário e o movimento republicano, traduzido por vezes em ásperas polémicas (…) um dos factos mais expressivos é-nos dado pela forma como o maior jornal operário, A Voz do Operário, acolhe a revolução republicana: no primeiro número, após a revolta de 5 de Outubro, publica uma notícia discreta, a uma coluna e em tipo pequeno sob o título: “Os últimos acontecimentos na capital”.

De resto, refere Victor de Sá, proclamada a República, a guerra social intensifica-se, com a burguesia republicana a afirmar-se claramente anti operária”.

A promessa de sufrágio universal, adianta Victor de Sá, “não é cumprida e as greves passam a ser reprimidas com mais violência”.

É este o berço do jornal A Voz do Operário que, há 145 anos, o operário tabaqueiro Custódio Gomes imaginou e que, no dia seguinte, os seus camaradas aprovaram. Nascia num sábado, a 11 de outubro de 1879, o maior Jornal Operário. Teve como primeiro diretor Custódio Braz Pacheco, que num texto publicado no jornal e intitulado “Os operários” escrevia: “Queremos, porém, como operários, levar à evidência que nos assiste o direito de, pelos meios legais, pugnarmos pelos nossos interesses materiais e morais, fazermos sentir aos nossos opressores que, pelo trabalho e pela palavra, temos a força precisa para sacudirmos o jugo de ferro que nos quiseram impor, e bem assim demonstrarmos, com argumentos indestrutíveis, que a classe operária desempenha um importante papel no teatro do mundo”.

A vida do jornal e da instituição que haveria de ser criada mais tarde, gravariam pelo exemplo, a mensagem que ainda hoje perdura na parede do Salão Nobre da instituição: Trabalhadores, uni-vos!

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