Entrevista

Resistência

Carlos Lopes Pereira: “A independência nacional não é apenas ter uma bandeira e um hino”

O jornalista Carlos Lopes Pereira, natural de Bissau, é especialista no continente africano e viveu tanto na Guiné como em Cabo Verde. Fez parte do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), durante a luta contra o colonialismo, integrando a Rádio Libertação, emissora da organização armada que transmitia a partir de Conacri.

Quais diria que são os pontos mais atuais do legado de Amílcar Cabral?

Desde logo, o seu exemplo: o revolucionário que tudo sacrificou – a família, a carreira profissional, o bem-estar material e, até, a vida – pelos seus ideais e entregou-se totalmente à luta pela independência dos seus povos.

O valioso legado de Cabral são os dois novos Estados nascidos e as duas nações forjadas na luta política e armada que dirigiu. A conquista da independência nacional da Guiné-Bissau e Cabo Verde foi a maior revolução da história dos povos guineense e cabo-verdiano. 

No plano teórico, são muitas as contribuições de Cabral plenas de atualidade, a principal delas a ideia de que a independência nacional não é apenas ter uma bandeira e um hino mas uma etapa da luta pela emancipação social dos povos. Ou seja: no quadro da luta anti-imperialista, à luta contra o colonialismo segue-se a luta contra o neocolonialismo, por uma verdadeira independência e soberania nacionais.

De que forma é que está presente na memória dos povos africanos?

Pan-africanista, anti-colonialista, anti-fascista, anti-racista, anti-imperialista – um revolucionário –, Amílcar Cabral é hoje evocado como um dos heróis da África combatente. De uma plêiade de que também fazem parte Nelson Mandela, Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba, Modibo Keita, Thomas Sankara, Agostinho Neto, Samora Machel e outros, cujos exemplos e ideais iluminam as novas gerações nas lutas do nosso tempo. 

É possível olhar para a revolução de Abril sem entender o papel de Cabral e outros dirigentes na faísca que espoletou a luta pela libertação nacional nas ex-colónias?

As lutas de libertação nacional dos povos de Angola, da Guiné e Cabo Verde e de Moçambique, dirigidas respectivamente pelo PAIGC, pelo MPLA e pela Frelimo, entre 1956 e 1974, foram um contributo importante para o eclodir da Revolução de Abril e o derrubamento do fascismo em Portugal pelo povo português.

Houve “uma íntima associação da luta contra o colonialismo e contra o fascismo que tornou possível a confluência de históricas vitórias comuns coroando a heróica luta dos nossos povos: a libertação do povo português da ditadura fascista com a Revolução de Abril de 1974 e a conquista da independência pelos povos então submetidos ao jugo colonial português”, como afirmou Álvaro Cunhal.

É um facto histórico: as lutas contra o fascismo e contra o colonialismo, que tinham inimigos comuns e amigos comuns, foram aliadas e contribuíram para os avanços uma da outra.

Como é que olha para o desinteresse dos governos cabo-verdiano e guineense no centenário do nascimento de Cabral?

Os princípios ideológicos e a prática política da maioria das forças que governam hoje a Guiné-Bissau e Cabo Verde são o contrário do que defendeu Cabral: liberdade e independência em vez de dominação estrangeira; democracia para a maioria do povo em vez de ditadura de uma minoria; emancipação social em vez de exploração do homem pelo homem; desenvolvimento soberano em vez de neocolonialismo; paz em vez de guerra. Por isso, esses governos, de direita, colocaram obstáculos à realização das comemorações estatais dos 100 anos do nascimento de Cabral. Eles procuram – numa operação mais ampla e que não começou agora – falsificar e silenciar a história da luta contra a dominação colonialista portuguesa, da luta pela emancipação nacional e social dos povos dos dois países. Em vão: Amílcar Cabral e a gesta independentista vitoriosa dirigida pelo PAIGC vivem na memória histórica e nos corações dos guineenses e cabo-verdianos.

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