Opinião

Lisboa

A liberalização do Tuk Tuk: um atentado contra a(s) Cidade(s)

Sou um cidadão que adoptou a Amadora, primeiro por necessidade, depois por gosto, mas isso não altera o facto de ter nascido e sido criado em Lisboa. É pois de Lisboa que sofro as dores, muito mais que de outras cidades afectadas pelo mesmo mal. Não duvido que o Porto, Sintra e o Algarve sofram, como Lisboa, da liberalização do turismo, mas é de Lisboa que quero falar.

Mas uma praga que foi criada, autorizada, estimulada pelos poderes eleitos pela Cidade. Tudo remonta ao ano de 2009, quando a resolução da crise bancária de 2008 criou uma crise de dívida aos Estados. O Governo Sócrates – sempre com o apoio do PSD, pois era então um governo minoritário – começava com os PEC, os ditos Programas de Estabilidade e Crescimento, que iriam culminar com o Memorando de Entendimento entre as duas troikas, a nacional (PS, PSD e CDS) e a internacional (FMI, UE, BCE). O turismo era visto como uma salvação, e a liberalização como a garantia de que a actividade crescia. O Decreto-Lei 108/2009, com a assinatura de José Sócrates e Cavaco Silva, liberalizava a actividade das animações turísticas. Em 2013 o governo PSD/CDS alterou o Decreto-Lei, reforçando ainda mais a liberalização.

Basicamente, para realizar uma animação turística bastava pagar um seguro e realizar uma inscrição formal junto do Turismo de Portugal. Et voilá, os empreendedores que mobilizassem capital e pusessem a coisa a rolar, que o mercado acabaria por tudo regular e equilibrar. E assim aconteceu. Excepto a parte do «mercado» ter regulado ou equilibrado o que quer que fosse. 

Não foi de agora que a Cidade se apercebeu das consequência desta liberalização. Sim, porque das desastrosas consequências da liberalização marítimo-turística, por exemplo, ainda não se apercebeu a maior parte das pessoas, porque o caos fica lá longe, nas praias e no mar, a stressar, destruir e poluir ecossistemas, com consequências tão ou até mais graves que os tuk tuk

É de 2015 que a Comissão de Economia da Assembleia Municipal de Lisboa adopta, depois de um conjunto de Audições, como recomendação à Assembleia e à Câmara a necessidade de «Regulamentar a actividade do transporte de passageiros em veículo Tuk Tuk de forma a ordenar o mesmo». Passaram-se 9 anos, o problema agravou-se a cada ano, e a Câmara nada de efectivo fez, além de promessas e muita demagogia. E na inoperância ou cumplicidade com a liberalização foram iguais, indistinguíveis, quer os Executivos de Medina quer o de Moedas.

Percebemos a paixão da IL, do PS e do PSD pela liberalização dos Tuk Tuk, presos que estão numa ideologia tão velha e ultrapassada como o próprio capitalismo. Mas é necessário que a Cidade decida se quer ou não quer Tuk Tuk, quantos quer, onde, para fazer o quê e como. Chama-se a isto regular a actividade económica. Aliás, como deveria decidir quantos quartos de hotel quer, quantos alojamentos locais, quantos parques de campismo, para evitar a turistificação massiva que nos expulsa da Cidade e está já a criar movimentos de revolta em Espanha e outros locais do planeta. 

E aos habitantes da Cidade não pode ser indiferente a outra realidade profundamente ligada à liberalização dos Tuk Tuk, a todas as liberalizações: a degradação das condições de trabalho. Estamos no século XXI, não há qualquer razão para que um trabalhador, para garantir o seu sustento, tenha de trabalhar 10, 12, 14 horas, seis ou sete dias por semana, sem garantias mínimas em caso de acidente ou doença, sem estabilidade. Não interessa se a este explorado lhe chamam parceiro, colaborador, empresário, empreendedor ou autónomo: é do seu trabalho que vive, e a liberalização serve para o colocar em processo de auto-exploração, em concorrência com outros como ele, na luta pela maior taxa possível de autoexploração. E aqueles que são trabalhadores por conta de outrem sofrem do ambiente desregulado, flexibilizado, do sector, e da falta de fiscalização sobre o mesmo, com horários ilegais, pagamentos por debaixo da mesa e muita precariedade. E por isso, com a Regulação da actividade económica tem que vir a regulação do trabalho nessa actividade e uma fiscalização efectiva que impeça tanto a sobreexploração como a autoexploração.

Lisboa é uma vítima da liberalização. A liberalização não é um exclusivo dos queques da IL: é uma ideologia assimilada tanto por PS como PSD como pelo CH, e que tem marcado a gestão da Cidade. Que começa a perceber na pele que tem que romper com este caminho. A discussão não pode ser entre qual dos liberais vai governar Lisboa, o que se reconhece de direita, o que se diz de esquerda ou o que finge estar acima de tais categorias. A liberalização dos tuk tuk é a cidades deles. O que é preciso discutir é como vai o povo de Lisboa – o mesmo que elegeu o Mestre e aclamou os Capitães – romper com este caminho e governar a sua própria Cidade. Discutir, consensualizar e concretizar.

Artigos Relacionados