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“Refugiado” – o pujante espectáculo que coloca o dedo na ferida sobre o maior drama humano da actualidade

A 20 de Junho comemorou-se o Dia Mundial do Refugiado, data designada pelas Nações Unidas, para apelar à consciencialização sobre o drama contemporâneo dos refugiados. O actor e encenador Paulo Matos apresentou no Teatro São Luiz, nesse mesmo dia, “Refugiado – Epopeia de uma Fuga”, espectáculo de (e com) um só homem, que representa todos os saem dos seus países e arriscam a vida. Este cidadão (de quem nunca sabemos o nome) vai desabafando a sua história. O profundíssimo texto é da autoria de Matos, que foi dirigido pela actriz Rita Lello, e acompanhado ao violino de Susana Francês.

Valeu a pena?

Um homem está no centro do palco, junto a uma roda gigante, e confronta-nos com o seu olhar directo. É a noite da sua despedida. A família e ele sabem que o mais provável é não voltar. Tudo é contado através do relato desse homem. Projectam-se imagens de um tórrido deserto onde sombras de corpos caminham. Ele é um desses anónimos: avança entre a esperança, a expectativa e o desespero. Tudo é incerteza e desconhecido. Vemos as imagens das rodas do camião. Só seguem os que pagarem aos traficantes. O nosso protagonista tenta ajudar um companheiro. O outro não tem forças para subir, e deixa-se cair. Na mão, o refugiado fica com um saco. Terá sido uma ilusão, a ajuda frustrada que culminou em morte? 

As pessoas são enfiadas num bote de borracha para atravessar o continente com vista ao “mundo rico”. As altas fragas fazem com que um rapaz caia; a sua mãe, em desespero, também se atira. O nosso refugiado fica a olhar o mar, depois dos corpos desaparecerem. Os que se salvaram seguem calados; sentem-se culpados. Aparece uma luz na escuridão da noite, após dias de desespero. A luz rapidamente se transforma numa escuridão maior: é um barco que passa pela frágil embarcação, a repele com a sua força e com a frase “Vão pra vossa terra” (que vemos várias vezes projectada). 

Paulo Matos na folha de sala de “Refugiado – Epopeia de uma Fuga” esclarece: “Não se trata apenas de retratar os horrores dos refugiados, mas de dar voz (e ouvidos) ao discurso íntimo que se instala no caminho tortuoso do próprio ser que foge, que se esconde, que atravessa horrores na procura de uma nova vida.”. Valeu a pena?, pergunta Sérgio Godinho na música “Fugitivo” (1988): “Um homem luta contra o sangue /que derrama / e diz: valeu a pena?”. Não sabemos que sofrimentos impelem cada alma humana a tentar a sorte noutros lugares longe das suas raízes. 

Surge um porto “seguro”. Um milagre, diz o refugiado – a comida, as roupas que podem escolher, o banho de água morna. Depressa é atirado para esse “mundo rico”, sem saber onde está e que língua ali falam. Sorrir, independentemente de tudo, sorrir, foi o conselho que lhe deram. Caminha na noite da desconhecida cidade. Dorme ao frio e ao relento. Espera, tem ainda esperança. Conseguiu chegar, pode tentar erguer uma outra vida. Aproxima-se um grupo; dão-lhe um empurrão, e tudo se transforma na mais cruel das violências. O homem que procurava refúgio jaz morto, anónimo, num país anónimo no chão. 

Confrontar Deus e a Humanidade

Retomo as inquietações de Paulo Matos: “Nós, espectadores e cidadãos que tudo sabemos e a tudo assistimos, o que fazemos perante este sofrimento? Seremos capazes de receber, compreender, acolher? Ou iremos rejeitar e fechar os olhos e a alma em argumentos sem memória e unicamente enraizados nos nossos medos inconfessionáveis?” Por isso, depois da morte do refugiado, Matos confronta a audiência, ao mesmo tempo que se dirige a um ser imortal, que criou à sua imagem um ser mortal com livre-arbítrio e capaz de actos atrozes. É uma revolta contra Deus; um apelo à Humanidade que (re)existe em cada um de nós. 

“Quanto vale uma utopia? / Vale tudo? Quanto vale? / Um homem corre na noite /é uma imagem banal” (Sérgio Godinho). Jamais podemos deixar que uma utopia, um sonho e a luta pela melhoria das condições de vida de cada cidadão sejam banais. Jamais podemos permitir que alguém permaneça anónimo e sozinho, que seja discriminado e fique desabrigado – e que isso se torne numa imagem banal. 

“Refugiado – Epopeia de uma Fuga” é um manifesto magnífico empenhado social e politicamente, em prol dos mais desfavorecidos e na luta constante pela igualdade e pela tolerância.

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