É com ela que somos apresentados a Victor (Henrique Gil), o centro de “Victor ou as Crianças no Poder”, peça do poeta e dramaturgo francês Roger Vitrac, encenada por João Pedro Mamede e co-produzida pelos Artistas Unidos e Os Possessos.
Entramos de rompante num universo kitsch: salão com um enorme pé direito destacado pelas paredes, chão com toscos quadrados pretos com esquadria vermelha, mesa com seis cadeiras de linhas direitas, armário que dá nas vistas… À cenografia excêntrica junta-se o turbilhão de excentricidade que é Victor. É o seu nono aniversário, mas a “criança” parece-se e age como um adolescente. Trata-se, no fundo, de uma adolescência infantil, tal como infantilizados são quase todos os comportamentos das personagens.
Estamos num núcleo familiar composto também pelos pais de Vítor, Charles e Émilie; a amiga Esther (Isabel Costa) e os pais desta, Thérese (Mia Tomé) e Antoine (Rafael Gomes); e um general (Leonardo Garibaldi). O círculo doméstico fechado permite atestar da profundidade de cada carácter, reduzindo-o ao osso. A superficialidade sobressai no modo como se relacionam uns com os outros na intimidade.
Os caprichos que escondem segredos
O primeiro conflito centra-se na jarra que Victor parte por capricho, acusando Lili e Esther. Todos discutem a banalidade do assunto. Na verdade, o que está em causa são os jogos de poder e as relações sub-reptícias entre as personagens: a mãe de Esther, Therese, é amante do pai de Victor (André Pardal); existe um relacionamento especial entre Victor e Antoine; Lili e Esther desejam Victor, mas a mãe (Ana Amaral) não o larga. Todos querem exercer a liderança nas conversas e tomadas de decisão. Esse lugar pertence a Victor, não apenas por ser o aniversariante, mas porque talvez seja o mais inteligente de todos. A velocidade dos discursos e acontecimentos – de onde estão ausentes o silêncio e a reflexão – acentua o vazio. Se cada um deles parasse, ficaria na angústia das perguntas: O que é a minha vida? O que estou a fazer entre estas pessoas?
A realidade é difícil de encarar. Antoine, traumatizado com a guerra, o mais turbulento e instável, é também quem se permite ser sincero em relação ao se sente. Porém, a dificuldade de lidar consigo mesmo fá-lo sucumbir. Émile e Charles precisam de tomar uma substância alucinogénia para falar sobre o adultério. Os sentimentos são escamoteados pelas máscaras histriónicas que cada um cria de si. São segredos que se escondem, ou que se revelam sem pudor de magoar outros. O que resta, no desfecho, é uma tristeza existencialista, num dia de celebração, e em que todos estão parados numa faixa etária precoce.
No final, perguntamo-nos o porquê de tanta apresentação de egos e superficialidade entre pessoas que se conhecem. E, “Victor ou as Crianças no Poder” é tudo menos um texto superficial. O dispositivo dramático trabalha a inconsciência de quem não quer pensar profundamente sobre o que quer e o que sente, pois isso pode trazer sofrimento.
Sem telemóveis ou redes sociais, “Victor ou as Crianças no Poder” ecoa em todos nós. Sempre que ficamos parados na espuma dos dias, evitando pensar sobre o que se passa no mundo, connosco e com os que nos são íntimos. Para, ao retardador, percebermos que a inconsciência pode ter consequências que não prevemos.
Nota final para a extraordinária interpretação de todos os actores. São eles que dão corpo a toda a força e potência de um “tão actual” texto de 1928.
Os Artistas Unidos voltam à carga com um novo espectáculo, a 7 de Março: “Girafas”, do autor catalão contemporâneo Pau Miró. Com sempre, vale a pena ir ver.