A União Europeia está a construir uma intrincada rede de legislação federal – ainda lhe chamam comunitária – para se dotar de mecanismos de controlo das redes digitais. Primeiro, teve de ter a capacidade de chamar a si a necessidade de impor legislação comum a todos os Estados Membro. Fê-lo, como é costume, através da desculpa da necessidade de uniformizar as condições de mercado para que este possa ter uma dimensão europeia e dele eliminar as distorções de concorrência: «Os Estados-Membros estão, cada vez mais, a introduzir, ou a ponderar introduzir, legislação nacional sobre as matérias abrangidas pelo presente regulamento, impondo, nomeadamente, requisitos de diligência aos prestadores de serviços intermediários no que se refere ao modo como deverão fazer face aos conteúdos ilegais, à desinformação em linha ou a outros riscos sociais. Essas legislações nacionais divergentes afetam negativamente o mercado interno.»
E é sempre neste registo, como se de uma questão económica se estivesse a tratar, que as directivas já existentes sobre estas matérias foram substituídas por dois Regulamentos (Os Regulamentos são leis da UE de aplicação obrigatória nos Estados Membro, enquanto as directivas necessitavam de ser transportas para a legislação nacional), o Digital Market Act (DMA, Regulamento (UE) 2022/1925) e o Digital Services Act (DSA, Regulamento (UE) 2022/2065), aprovados respectivamente em Setembro e Outubro de 2022, e que se encontram em implementação gradual até 2025.
Apesar de se tratarem de instituições profundamente marcadas pela ideologia neoliberal, é quase marxista a sua análise ao papel e perigos dos grandes monopólios nos serviços digitais: «Surgiu um número limitado de grandes empresas que prestam serviços essenciais de plataforma e que dispõem de um considerável poder económico que pode torná-las elegíveis para serem designadas como controladores de acesso nos termos do presente regulamento. (…) Algumas dessas empresas exercem controlo sobre inteiros ecossistemas de plataformas no âmbito da economia digital, sendo estruturalmente muito difícil para os participantes no mercado, sejam eles existentes ou novos, desafiar ou disputar a posição daqueles, independentemente do nível de inovação ou eficiência que esses participantes no mercado possam ter… pela existência de barreiras muito significativas à entrada ou saída, nomeadamente custos de investimento elevados…. Por conseguinte, aumenta a probabilidade de os mercados subjacentes não funcionarem corretamente, ou deixarem de funcionar corretamente a breve trecho.» (preâmbulo do DMA)
E dizemos quase porque se revelam incapazes de compreender (ou, pelo menos, de assinalar), por um lado, que essa concentração e centralização de capitais é ela própria fruto da «livre concorrência» que tanto querem salvaguardar e, por outro, que a mesma análise que gera a identificação dos riscos para a «livre concorrência» também se deveria aplicar às graves limitações à liberdade política que este tipo de concentração comporta, principalmente para aqueles que têm um projecto político que se opõe aos interesses desses grandes grupos monopolistas.
Para iniciar o processo de controlo dos controladores de acesso, a Comissão designou em Abril deste ano 17 plataformas em linha de muito grande dimensão e 2 motores de pesquisa em linha de muito grande dimensão com, pelo menos, 45 milhões de utilizadores ativos mensais: Alibaba AliExpress; Amazon Store; Apple AppStore; Booking.com; Facebook; Google Play; Google Maps; Google Shopping; Instagram; LinkedIn; Pinterest; Snapchat; TikTok; Twitter; Wikipédia; YouTube; Zalando, Bing; Google Search. E explicou o que tinham de fazer: «Moderação de conteúdos mais diligente, menos desinformação: as plataformas e os motores de pesquisa devem tomar medidas para fazer face aos riscos associados à difusão de conteúdos ilegais em linha e aos efeitos negativos na liberdade de expressão e de informação; as plataformas devem dispor de termos e condições claros e aplicá-los de forma diligente e não arbitrária; as plataformas devem dispor de um mecanismo que permita aos utilizadores sinalizar conteúdos ilegais e, recebidas as notificações, devem agir de forma expedita; as plataformas devem analisar os seus riscos específicos e adotar medidas de atenuação — por exemplo, para fazer face à propagação de desinformação e à utilização não autêntica do seu serviço.»
É aqui, na luta contra a desinformação, contra as «fake news», que o terreno se torna mais escorregadio e perigoso. Informar sobre a verdade das guerras da NATO é desinformar? Denunciar o carácter falso de mitos amplamente divulgados é desinformar? Não há forma de estabelecer critérios objectivos fáceis. E no final é de censura que se está a falar.
Todo este sistema de controlo é sempre apresentado como destinado a proteger a liberdade de expressão. Aliás, a Comissão atreve-se mesmo a afirmar que: «A proteção da liberdade de expressão está no cerne do Regulamento Serviços Digitais, incluindo, nomeadamente, a proteção contra a interferência governamental na liberdade de expressão e de informação.» Só que quando uma limitação à liberdade de expressão é imposta por lei – como está a acontecer actualmente com a Guerra na Ucrânia e a proibição dos médias russos e da informação que denuncie os crimes da NATO – ela sai da esfera governamental e passa a ter que ser imposta pelo gigantesco mecanismo acima descrito. Da mesma forma, há países da União Europeia e candidatos à União Europeia que têm leis que proíbem a propaganda do comunismo, que proíbem o uso de línguas de minorias nacionais, e muitos deles tiveram num passado não muito longínquo leis de carácter racista e xenófobo. Pode ser proibido afirmar o facto, objectivo, que o Exército Vermelho libertou a Polónia do nazi-fascismo, só porque tal não agrada à nova classe dominante nesse país? Etc.
Por fim, a UE simultaneamente afasta os Estados Membro do controlo do grandes «controladores de acesso» e encarrega-os de controlar o resto, bem como de recepcionar eventuais queixas nacionais do controlo comunitário aos grandes. Até Fevereiro de 2024 devem para tal dispor de Autoridades Reguladoras dos Serviços Digitais, de Sinalizadores de Confiança e de um Coordenador Nacional dos Serviços digitais, tudo e todos independentes dos Estados nacionais e subordinados à Comissão Europeia.