É premissa comummente aceite que a perda da capacidade de pensamento-mágico acontece (mais coisa menos coisa) até aos seis anos de vida. Depois disso, mantê-la passa a ser um fenómeno da vontade férrea – trata-se de escolher acreditar, conscientemente, no impossível. Nalgumas cabeças isso passa-se todos os dias. Dá-se uso à plataforma dos sonhos, fecha-se os olhos ao longo do dia para ver o que não-está-à-nossa-frente e por vezes, se houver sorte, até se dobra a realidade com mais habilidade sem se precisar de nenhum aparelho físico de suporte. Quem do exterior pousar o olhar, nada vê senão um humano funcional, mas que pode bem estar a planear uma fuga contígua à descida do sol, com alguém já desaparecido, alguém que aguarda na lista de pessoas-a-conhecer.
Os livros, os discos, as imagens, as pinturas, as fotografias, as cassetes e os posters, os postais ou os autocolantes dispostos pela rua costumam funcionar como ponto de partida para essas aventuras.
“O que diria o Chico Buarque se lhe perguntássemos se algum dia chegou a encontrar o cavalo que só falava inglês? E se fez passar aquela lei que nos obrigava à felicidade?” – mesmo que tentássemos endereçar-lhe por carta escrita, estas e outras perguntas importantes, ficaríamos certamente detidos na impossibilidade de descobrir para onde as enviar e por isso, uma boa solução será começar, amiúde, a tomar chá de camomila com o Chico, e a colocar-lhas directamente. “Será que Nietzsche se emocionou quando descreveu o pensamento dos pré-socráticos?” – boa pergunta para o entalar, enquanto lhe damos esta caixinha com bolachas de manteiga feitas na quarta-feira.
E bem poderíamos passear de mota com Heráclito que gentilmente nos explicaria porque é que a dialéctica nos impossibilita de entrar no mesmo rio duas vezes e escrever no cantinho de uma toalha de papel uma nota à Nina Simone pedindo que nos ensinasse orações tão desinquietantes como a da Sinnerman.
Esta arte de pensar magicamente enquanto adulto dá trabalho, mas a boa notícia é que o eventual acrescento de tempo livre no Verão pode bem servir para começarmos o empreendimento da tarefa. Sugerimos como ponto de partida três livros que podem pôr a teste a resiliência do intento.
Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, de Walter Benjamin. Uma colectânea de aforismos e fragmentos, frutos de uma abordagem de temas pouco comuns num ensaio filosófico, como os sonhos pessoais e a forma como se observam as ruas de uma cidade e todos os detalhes que as compõem enquanto mapeamento de uma possibilidade de retorno às tenras lembranças e à força propulsora dos pensamentos. Um “bazar filosófico”, como pontuou Ernst Bloch, que nos relembra que é o acto de lembrar que dá sentido ao passado.
As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, conhecida viagem ao lugar do fantástico, povoado por criaturas peculiares e antropomórficas que operam dentro da lógica do absurdo. Entre alusões satíricas, paródias e referências a poemas e histórias populares, Carroll leva-nos pela mão ao buraco do coelho branco e, ao contrário dele, faz-nos sentir que estamos a chegar sempre a tempo e horas ao espaço imprevisível da imaginação.
E finalmente os poemas de Emily Dickinson, que enquanto poeta quase enclausurada que viveu através do imenso que escreveu numa língua enigmática, ambígua, paradoxal, não via mais num quotidiano terreno – a vida doméstica, o vestuário, a casa – do que no imaginado, portanto sem fronteiras. E afinal há mesmo fronteiras? Parece-nos que não.
Para assíduos deste jogo de encontro próximo com o que se poderia descrever como impossível, afiguram-se estas sugestões como preciosos pontos de partida, mas mais importante que acatá-las será o desafio de preencher os dias que ainda se prevêem quentes e longos com a satisfação do encontro com as maravilhas que um dia alguém ousou exteriorizar.