O Programa do Governo é uma declaração de guerra contra quem trabalha em Portugal?
É. Aquilo que está por trás, ideologicamente, é claro para todos no movimento sindical. O objetivo é desvalorizar o trabalho, valorizar o grande capital e, quanto aos serviços públicos e à administração pública, tentar fazer o mais perto possível de uma terraplanagem. Por vezes de uma forma mais honesta e direta, outras de uma forma mais encapuzada, mas a ideia é essa. Começa-se logo com diferenças substantivas entre a valorização do capital e a valorização do trabalho, com uma redução da taxa de IRC para as grandes empresas, que são as que vão ser beneficiadas com isso.
Isto ao mesmo tempo que faz uma política em relação aos trabalhadores da administração pública de aprofundamento do caminho de individualização das relações de trabalho. Já aponta duas ou três medidas mais concretas, nomeadamente no âmbito da avaliação, que diz, e são palavras do Programa do Governo, que quer deixar de ter uma avaliação baseada nas competências com a ideia de valorizar o mérito em detrimento da antiguidade. E atenção, não defendemos o atual SIADAP, mas isto vai contribuir para dividir trabalhadores com base no sistema de avaliação, que é hoje já suficientemente injusto. E esta questão do mérito na administração pública é sempre bastante relativa. É muito difícil de medir. Nós costumamos dar um exemplo que acho que é revelador, sem desprimor para nenhuma das freguesias que vou referir. Avaliar o desempenho do trabalho numa escola pública no Restelo e outra num contexto social mais difícil vai dar resultados obviamente diferentes quando as condições de partida já eram diferentes. Como é que se mede o mérito com base nos resultados obtidos numa escola e noutra de uma forma justa? Não é possível. Portanto, estar a comparar isto, como comparar o trabalho num centro de saúde e num hospital, não são coisas que se possam fazer diretamente.
Que impacto é que vai ter esta revisão laboral na vida dos trabalhadores e nos serviços públicos?
Tendo em conta que a ideia é retirar direitos, não vai acontecer nada de bom. Já se fala outra vez em flexibilizar as relações de trabalho, como se não fossem flexíveis o suficiente. Na administração pública, os contratos individuais de trabalho já existem há muito tempo e já são a maioria em muitos serviços como hospitais públicos. A maior parte dos trabalhadores já não tem nenhum vínculo coletivo e, portanto, trabalha em funções públicas com um contrato individual de trabalho. Isto pode parecer uma coisa menor, mas não é. Os contratos individuais de trabalho são regidos por uma lei diferente, que é o Código do Trabalho, e a própria organização dos serviços fica com o cutelo em cima. E é por isso que nós defendemos o vínculo público de nomeação, não só para defender o vínculo dos trabalhadores, mas para defender o posto de trabalho em si. E, portanto, flexibilizar ainda mais as relações de trabalho, nomeadamente em termos de contratação coletiva, com a introdução do vínculo privado em larga escala, não traz nada de bom para quem trabalha, nem para a própria defesa dos serviços públicos.
Soma-se a isto o problema de voltarem à questão da flexibilidade dos horários de trabalho, dos bancos de horas, que dão muito jeito a quem organiza escalas de trabalho e serviços mas não dão jeito nenhum à vida de quem trabalha. Nós hoje já temos falsos bancos de horas e perfeitamente ilegais, nomeadamente na área da saúde. Os trabalhadores têm milhares de horas a haver à conta da tal flexibilização de horários e de bancos de horas.
Então, espera-se uma intensificação da luta?
Acho que é inevitável, se o governo não alterar a perspetiva que tem. Para começar, já fez uma série de anúncios. Trata-se de um governo de continuidade e, portanto, conhece bem a nossa posição. Anuncia estas medidas, anuncia o programa do governo, e ainda não ouvimos falar sequer em diálogo social. Portanto, a ideia há-de ser semelhante ao que tem acontecido: fazer simulacros de negociações e avançar com as medidas. Tendo em conta a natureza das medidas, não estamos à espera de nada diferente que não seja ter de intensificar a luta dos trabalhadores. Ninguém vai aceitar de ânimo leve o que vai acontecer com a administração pública, caso isto se concretize.
Nesse sentido, o governo falou também em restringir o direito à greve. Vêem isto como uma cedência à agenda da extrema-direita?
Sim, é um anúncio grave. É uma tentativa de condicionar o direito à greve. Só acho que não é uma cedência porque não me parece que o governo não tivesse vontade de alterar [a lei da greve]. Os partidos que hoje compõem o governo nunca foram grandes amigos do exercício do direito à greve. Agora, provavelmente sentem mais apoio para isto. A greve da CP é um excelente exemplo da propaganda que se faz à volta disto, mas há outros exemplos. Os sindicatos da CP fazem greve no período que entenderam fazer e eu acho que isso é um não assunto. O direito à greve existe e é para exercer quando queremos. Mas não se faz greve para chatear ninguém, não é? Faz-se greve porque não há resposta do outro lado. Depois, é preciso perceber se havia ou não condições objetivas para a CP e o governo terem respondido positivamente no processo negocial. Havia, é evidente que havia. Tanto que o governo no mesmo período em que não deu resposta aos trabalhadores decidiu aumentar o orçamento para a defesa sem pejo nenhum. Portanto, o que se foi construindo aqui ao longo do tempo é uma conversa que diz que o direito à greve, põe em causa serviços públicos, põe em causa direitos essenciais da população. Por causa de uma greve do INEM ouvimos todos dizer que foi posto em causa a segurança dos cuidados pré-hospitalares. Como se todos os dias – não é nos dias de greve, é todos os dias do ano – não houvesse escala de trabalhadores extraordinários para assegurar aquilo que são os cuidados pré-hospitalares. Vir culpar a greve é uma excelente desculpa para quem se quer desresponsabilizar, mas não é por causa disso que passa a ser verdade.
A greve só é usada em situações de conflito social, que deve ser minimizado e para isso é preciso diálogo. Nós convocamos greves sempre no limite, quando se entende que à mesa negocial já não há nada a fazer. Os trabalhadores perdem salário quando fazem greve. Esta proposta não é para garantir a paz social, é para garantir o silêncio social. Isso não é típico de um Estado de Direito. Portanto, não vale a pena virem dizer que o problema da falta de paz social é o excesso de direito à greve. Não, é a falta de diálogo dos patrões, a falta de contratação coletiva no setor privado que dignifique as condições de trabalho e na administração pública termos governos que respondam às necessidades e reivindicações dos trabalhadores.
Sente que tem havido mais obstáculos, mais barreiras ou mais repressão sobre aquilo que é a atividade sindical nos locais de trabalho?
Tem havido e até no próprio exercício de direito à greve, por via dos tribunais arbitrais. Portanto, esta questão da limitação já é só mais um passo. Nós já tivemos greves que contestámos com sentenças de tribunais da relação a dar-nos razão, por imposição de serviços mínimos excessivos. E quando digo excessivos é estupidamente excessivos. Houve greves em que os serviços mínimos definidos por alguns serviços foram superiores ao número normal de trabalhadores num dia normal de trabalho. Portanto, isto não cabe na cabeça de ninguém. Só por aí já há uma limitação grave de um direito dos trabalhadores.
O resultado das eleições reflete um reforço da extrema-direita, que passa a segunda força em deputados. Como é que chegámos até aqui?
Para fazer uma fogueira é preciso sempre três coisas: uma fonte de ignição, o combustível e o oxigénio. E os partidos que nos têm governado nos últimos anos — PSD, CDS e PS — contribuíram muito com lenha e gasolina para meter nessa fogueira do crescimento da extrema-direita, que seria a faísca. Qual é que é o problema? Quando não se responde de forma objetiva às necessidades dos trabalhadores, ao reforço de direitos, a garantir que as pessoas têm direito a uma vida digna, a um salário justo, que permita não só sobreviver mas viver com qualidade, podendo aproveitar o tempo que aqui passamos todos, que é pouco, alimentam-se insatisfações brutais. Se aliarmos isso a uma despolitização do discurso, isso tem reflexos na capacidade que as pessoas têm de observar a realidade, ter um espírito crítico sobre aquilo que se passa à sua volta.
Abrimos a porta à entrada de abutres e de uma ideologia que, muito longe de poder dar uma resposta objetiva a qualquer problema que as pessoas sentem e contra o qual se revoltam, acabam por ganhar o espaço. O crescimento da extrema-direita em Portugal e na Europa e noutras partes do mundo não é nenhum acaso. É o resultado explícito de políticas liberais que não dão resposta aos trabalhadores, que faz com que as pessoas procurem outras opções. Opções essas que, se por acaso chegarem a ser postas em prática, vão revelar muito rapidamente ao que vêm e aquilo ao que vêm está muito longe de ser a melhoria das condições de vida e de trabalho seja lá do que o povo for. Cá não é exceção. Isto alimenta discursos de ódio, políticas divisionistas na sociedade, que é preciso combater. O que é preciso fazer? Para começar, a obrigação de qualquer governo que se diga democrático é começar a resolver os problemas da vida de quem trabalha. Não parece que seja isso que esteja a acontecer com este governo e com este programa.
E qual deve ser o papel dos sindicatos no combate à extrema-direita?
Os sindicatos são uma das componentes das forças políticas, fazem parte das relações de forças entre quem trabalha e quem não trabalha, entre o trabalho e o capital. Nós não temos vergonha nenhuma, muito pelo contrário, temos muito orgulho em dizer que somos organizações de classe. Nós estamos do lado dos trabalhadores. Ponto final, não temos dúvidas sobre isso. Portanto, a nossa intervenção, para além de ser sindical, deve ser também política. Deve ser dar consciência aos trabalhadores sobre este confronto entre capital e trabalho. E organizá-los para a luta por melhores condições de vida e trabalho e fazê-los entender que isso é uma questão política, profundamente política.
Nós temos identificado nos diversos fóruns sindicais, na CGTP-IN, na Frente Comum e nos próprios sindicatos, a necessidade de começar a falar mais de política com os trabalhadores — sem deixar a questão prioritária que é resolver problemas de quem trabalha, problemas concretos de legislação laboral, de horários de trabalho, direitos, dos mais variados temas que acompanhamos — mas é preciso falar de política com as pessoas. Porque o que vai ser necessário nos próximos tempos é esclarecer, esclarecer, esclarecer. Não temos hipótese nenhuma de trazer os trabalhadores para a sua luta se eles não tiverem noção ou uma consciência profunda do problema com que estão confrontados com um governo de direita e com uma extrema-direita a crescer no parlamento. Isto não significa partidarizar as discussões porque nós, como sindicatos, não fazemos apelos ao voto em partido algum, mas fazemos apelo ao voto em partidos que genericamente acompanhem aquilo que são as nossas posições em detrimento de outros.
Acha que uma eventual revisão da Constituição podia pôr em perigo os direitos ali consagrados?
O grande problema da Constituição é não ser cumprida. Não tivemos nenhum problema de desenvolvimento do país, desenvolvimento da produção nacional, da valorização de serviços públicos, de reforço das condições de vida e de trabalho nas mais diversas dimensões da vida das pessoas cuja responsabilidade se possa apontar à Constituição. Temos uma das constituições mais progressistas do mundo e estar a pensar em alterá-la para valorizar o país ou as pessoas que cá estão é uma absoluta estupidez. Acho que não há outra maneira de adjetivar isto. Parece-nos que querem alterar o caminho que a Constituição define. Já que não se cumpre escusa de estar escrito, não é? Mas isso retira objetivamente direitos democráticos a toda a gente. E, portanto, no que nos toca, se necessário for mobilizarmo-nos todos, trabalhadores da administração pública, do setor privado, sociedade civil, com certeza que contam com as nossas forças para esse confronto.