Cabíria vive ao quilómetro 19 de uma estrada, a caminho de Ostia. É neste descampado dos arrabaldes de Roma que um homem a atira ao rio sem piedade, com o intuito de lhe roubar a mala. Ela procura-o. O homem nunca mais aparece. Esta mulher pequena e irrequieta está sozinha no mundo. O seu rosto é tão cândido, expressivo e único que só temos vontade de a abraçar. Tal sentimento cresce, à medida que “as noites” de Cabíria se tornam mais “escuras”. Cabíria, nome pelo qual é conhecida Maria, é prostituta no centro da capital, e tem uma casa só sua, improvisada com tijolos, onde outros vivem em condições igualmente precárias. Apesar de ter Wanda como vizinha, colega de profissão e amiga, é uma mulher desprotegida. Os homens aproximam-se, e vêem-na apenas como um objecto que permite a concretização do seu desejo sexual.
A inocência e a alegria resistem como traços de carácter em Cabíria. Esta mulher não tem em si maldade, mas a maldade do mundo arremessa-a. Numa noite, conhece um conhecido actor e comendador. Diverte-se com ele num bar; vai jantar lagosta e beber champanhe a casa dele. É tudo inesperado; as suas expressões faciais e acções revelam espanto e agradecimento. O homem acaba por obliterar Cabíria. Esconde-a na casa-de-banho, quando aparece a mulher da sua classe social com quem tem um relacionamento. Quando amanhece, Cabíria é mandada embora. Olha para a outra mulher, despida, na cama do actor-comendador. O seu olhar é agora de desamparado. Quase lemos no seu rosto o que pensa: “Eu nunca poderei ser como aquela mulher. Isto foi um pequeno sonho.” Vem desta sequência a origem remonta da personagem de Cabíria. Em 1947, Fellini colaborava com Roberto Rossellini em “L’Amore” (baseado na peça “A Voz Humana”, de Jean Cocteau) e sugeriu ao colega que baseasse a segunda parte do filme (dividido em dois segmentos) na história que uma prostituta que tem um serão “mágico” com um famoso actor de cinema. Em 1952, em “Sheik Branco”, segunda longa-metragem de Fellini, existia já uma prostituta chamada Cabíria, que o realizador torna protagonista cinco anos depois, em “As Noites de Cabíria”.
A luta e a confiança na vida de Cabíria
Cabíria passa a maior parte do tempo sozinha. Isso não a impede de sonhar com alguém capaz de lhe dar aquilo que nunca teve: amor, partilha e compreensão. A vida desta mulher é dura. Cabíria sorri, e não desiste de lutar. Chega mesmo a ir a uma procissão com as suas amigas, acende uma vela, fica absorvida pelo fervor da multidão de crentes e pede à virgem Maria para a ajudar a mudar de vida. Um milagre que iria acontecer à sua frente não se concretiza; afinal o homem paralítico não começa a andar. As amigas querem divertir-se. Cabíria fica perturbada com tudo isto. Não quer continuar a ser maltratada pelos homens. Anda à deriva pela cidade. Entra num espectáculo de variedades, onde um ilusionista a hipnotiza. Durante essa “viagem”, imagina-se feliz, apaixonada e com 18 anos. Sente-se humilhada, quando percebe que foi alvo de chacota por parte do público maioritariamente masculina. A noite e as ruas são uma libertação.
Cabíria ganha algum recuo, quando um contabilista fica sensibilizado com a história que ela trouxe do seu inconsciente perante aquela audiência. Cabíria dá-lhe o benefício da dúvida. Saem algumas vezes, e ele ganha a sua confiança. Cabíria acha que o seu destino se alterou. À noite, conta com excitação às colegas o que está a acontecer; oferece-lhes os bombons que o futuro noivo lhe deu. Parece que as noites duras terminaram, um milagre alterou o destino da protagonista. Cabíria vende a sua casa. Vai começar uma vida nova. Está tão feliz; não se contém em si. Os seus movimentos e o seu rosto de criança grande são o diapasão dessa felicidade. Ela confia. Confia até ao derradeiro momento em que percebe que confiou novamente demais. E fica sozinha junto a um precipício. Olha a água lá em baixo, atira-se em desespero para o chão…
Cabíria não verga. Esta pequena grande mulher vira costas àquele fim de linha, e atravessa, destroçada, a floresta que antes percorrera com o suposto noivo. A vitalidade e a esperança renovam-se, quando à sua frente aparece um grupo de raparigas e rapazes que canta e dança. A força da juventude imiscui-se no meio de Cabíria. O rosto único da excepcional Giulietta Masina ilumina-se com o maior sorriso do mundo. “As Noites de Cabíria” voltam a ganhar um farol, sendo que, em última análise, esse farol é sempre a própria Cabíria. Foi com grande mérito que Masina venceu o prémio de melhor interpretação feminina no Festival de Cinema de Cannes, em 1957.