Internacional

Dia da Vitória

O tamanho da ingratidão

Há 80 anos, a Alemanha nazi rendia-se depois da tomada de Berlim pela União Soviética. Hoje, tenta-se falsificar a história e esconder que 80% dos soldados alemães caíram em combate contra as forças do Exército Vermelho.

Segundo a edição de 22 de abril do diário alemão Berliner Zeitung, o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão “recomendou aos distritos e municípios que não façam convites a diplomatas russos ou bielorrussos e, se necessário, mandem embora convidados indesejados” das cerimónias de comemoração dos 80 anos do Dia da Libertação, a derrota do nazismo, na II Guerra Mundial, invocando o que designam de “’previsível’ instrumentalização da comemoração por parte dos representantes oficiais da embaixada russa ou bielorrussa”, alertando o MNE alemão para a “a propaganda, desinformação e falsificação revisionista da história”.

Ainda segundo o Berliner Zeitung, a Fundação Memorial de Brandemburgo, à qual pertencem os antigos campos de concentração de Sachsenhausen e Ravensbrück, teria, por carta, sugerido às respetivas embaixadas para escolherem “outro dia para realizar um culto memorial silencioso, como um pequeno grupo”.

A União Europeia, através da sua comissária para os Negócios Estrangeiros, Política de Segurança e vice-presidente, Kaja Kallas, foi mais longe e intimou os Chefes de Estado dos 27 países da UE: “Deixámos bem claro que não queremos que nenhum país candidato participe nestes eventos de 9 de maio em Moscovo”, afirmou Kallas, apelando aos Estados-membros para que enviem os seus representantes à capital, Kiev.

Esta grosseira ingerência da comissária mereceu uma resposta imediata do primeiro-ministro eslovaco, Roberto Fico que, em comunicado, lembrou Kallas que “estamos em 2025 e não em 1939” e, acrescentou: “Gostaria de a informar que sou o primeiro-ministro legítimo da Eslováquia, um país soberano (…) Ninguém me pode dar ordens para ir ou não ir (…) Irei a Moscovo a 9 de maio”, concluiu. No mesmo sentido foi a posição da Sérvia, que irá estar presente nas comemorações em Moscovo.

Ora a propósito de memória e de falsificação da história, talvez convenha lembrar o sociólogo francês Maurice Halbwachs, morto pela Gestapo no campo de Concentração de Buchenwald: “[a memória histórica] deve ser a depositária fiel, a produtora correta do passado, fundamentada em dados que advenham de métodos controláveis intersubjetivamente”. Diz ainda o sociólogo que a “memória não faz corte ou ruptura entre passado e presente porque retém do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém”. E se, como refere o historiador Pierre Nora, a memória está “em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todos os usos e manipulações”, ela pode ser, nesse sentido, um campo minado, até pela contra-memória que, neste caso, sem legitimidade, se quer transformar em discurso dominante.

Se a “Necessidade da memória é uma necessidade da história”, centremo-nos no que a história nos faculta revisitando, então, os números frios da chacina Nazi na operação Barbarossa, iniciada a 22 de junho de 1941, que ceifou mais de 26,6 milhões de soviéticos, 13,6 milhões dos quais civis, 40% de todas as mortes provocadas pela Segunda Guerra Mundial, operação que tinha como pressuposto, como os documentos o comprovam, a destruição da população que ocupava o território da então União Soviética, dando carta branca aos militares da Wermacht, isentando-os de quaisquer processos-crime contra civis e prisioneiros de guerra soviéticos, o que carateriza a operação como um ato de genocídio, muito semelhante, não na dimensão, ao que há muito vem sendo desenhado em Gaza, com uma europa amnésica.

Os rastos dessa operação deixaram 1700 cidades destruídas total ou parcialmente, e 70 mil aldeias, em todo o território então designado URSS. Mais de 13 milhões de cidadãos da então União Soviética foram mortos, na Bielorrússia, por exemplo, mais de 620 aldeias e as respetivas populações foram queimadas.

Só durante o cerco de Leninegrado pelas tropas alemãs e finlandesas, que durou 872 dias (de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944), morreram mais de um milhão de habitantes, mais de metade (mais de 632 mil) à fome, impedidos de abandonar a cidade pelas tropas alemãs, um número de vítimas superior à totalidade de mortes, neste conflito, de EUA e Grã-Bretanha.

No processo de derrota da Alemanha Nazi, o primeiro grande passo é dado na batalha de Moscovo, onde morreram mais de 500 mil soldados alemães e cerca de 937 mil mortos entre as tropas e população soviética. A esta batalha, que travou o avanço das tropas alemãs, fazendo-as recuar, juntam-se vítimas das batalhas de Kiev, Leninegrado, Sebastopol, Smolensk e Odessa, mas a que marcou o ponto de viragem ocorreu em Stalingrado. Nesta batalha as tropas nazis perderam 1,5 milhões de soldados e as tropas do Exército Vermelho perderam 1 milhão e 130 mil pessoas.

É na frente oriental, no confronto de Kursk, que envolveu mais de 4 milhões de mortes, contabilizando as vítimas dos dois lados, que a derrota da Wermacht se começou a desenhar. Implicou a perda de 500 mil militares das tropas nazis, e a derrota cria as condições para o desembarque das tropas americanas e britânicas em Itália, com a consequente corte da aliança Mussolini/Hitler.

Já na Frente Ocidental, a operação Bagration constituiu a maior derrota da Alemanha nazi, decorreu no verão de 1944 e foi decisiva para o fim do III Reich. Nesta operação participaram do lado soviético, mais de 1,1 milhões de partisanos, morreram mais de 1 milhão de soldados das tropas nazis, e mais de 7 milhões de soldados do Exército Vermelho libertaram 7 países europeus do exército alemão, desde logo a própria Alemanha, Austria, Bulgária, Checoslováquia, Hungria, Jugoslávia, Noruega, Polónia e Roménia. A chegada a Berlim foi a 8 de maio de 1945 e a assinatura da capitulação nazi decorreu na madrugada do dia 9 de maio de 1945.

Nessa caminhada, a 27 de Janeiro de 1945, o Exército Vermelho entrou no campo de concentração de Aushwitz. As imagens descritas, o ambiente recordado pelo então tenente Ivan Martynushkin, relatado 60 anos mais tarde numa entrevista à Euronews, é uma memória viva. A neve que caía, pintava de branco um chão negro de cinzas. O cheiro nauseabundo dos milhares de corpos amontoados e queimados já não só nos fornos, mas no chão, davam a entender que os fornos já eram escassos para o número de corpos que os nazis pretendiam queimar, e recorda: “Aproximámo-nos de um grupo de prisioneiros, ficámos frente a frente. Os rostos escurecidos. Alguns agasalhados com os cobertores. Vimos então os seus olhos (…) algo de muito profundo naqueles olhos nos dizia que sentiam uma espécie de felicidade.” Este cenário de gente de olhos secos de lágrimas, sem expressão nem força para sorrir, nada coincidente com os filmes encenados alguns tempos depois, para glorificar o momento, ter-se-á repetido em Sachsenhausen e Ravensbrueck.

E é por isso que, a Europa de Kallas, Ursulla von der Leyen e António Costa, ao discriminar e impedir as autoridades russas de estarem presentes nas comemorações do Dia da Libertação, procura reescrever a história, deixando de fora 26,6 milhões de vítimas, 13,6 milhões dos quais civis, esquece os 34,4 milhões de soldados do Exército Vermelho, decisivos na derrota da Alemanha Nazi, desconsidera todo um povo que perdeu milhões de familiares resistindo, mas ignora também essa espécie de felicidade que brilhava nos olhos dos presos libertados em Aushwitz, em Sachsenhausen e Ravensbrueck; uma enorme ingratidão que tem a mesma dimensão da Europa que hoje ignora o genocídio em Gaza.

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