Nasceu em Vila Flor, na região de Trás-os-Montes. Como veio parar a Lisboa?
Vim pela primeira vez para Lisboa em 1963, em março, porque vinha oferecer-me para a Marinha. Vim à inspeção no Alfeite e fui apurado, coisa que não era fácil. Tinha trabalhado desde os 10 anos como efetivo numa oficina que era de família, que metia forja e metia trabalho no exterior com ferro e aço. E, pronto, fiquei. Fiquei nos fuzileiros. E, portanto, fiz a formação de fuzileiro. E a certa altura pôs-se a questão de ir para a guerra. Foi formada uma companhia de fuzileiros e eu estava lá, não me tendo oferecido, porque ali também o que valia para muitos destes jovens que vinham de todo o país era fazer uma comissão para juntar algum dinheiro para tentar mudar a vida.
Eu disse ao meu comandante, quando me vi metido numa companhia de fuzileiros para Moçambique, que não estava de acordo com a guerra. Já no Alfeite, prestes a embarcar para Moçambique, voltei a pedir-lhe para me retirar da lista e não me retirou. Disse-me que a gente ia para Lourenço Marques, que não ia para a guerra. Mas não. Nós fomos em junho de 1965 e, em dezembro desse ano, estávamos todos no norte, no Lago Niassa.
Foi quase uma vida inteira em Lisboa. O que sobra de transmontano em si?
O que mais me marcou e o que mais me doeu toda a vida, e continua obviamente a doer, é ter abandonado aquilo que é de facto a minha gente e a minha terra. Na vila, fui muito marcado por duas figuras, uma delas era solicitador, julgo que da Câmara Municipal e lia o República à janela. Outra figura que me impressionou e que me marcou muito do ponto de vista político foi um homem a quem chamávamos Vermelho. Foi a primeira vez que vi alguém agrilhoado, assim com aquelas correntes de ferro nos pés e a percorrer a avenida principal, a percorrer com os pés agarrados um ao outro por essas correntes, com dois militares da GNR, um de cada lado. Eu ainda era uma criança. Esse homem abria as portas de casa às pessoas que passavam fome.
Aos 10 anos, quando fiz o exame [na escola primária], pedi uma conversa com o meu pai. “Olhe, cheguei a distinto, gostava de continuar a estudar e vai abrir um colégio. Deixe-me ir estudar”, disse-lhe. Perguntou-me quanto é que custava e respondi-lhe que 300 escudos por trimestre. Então, respondeu-me: “Goza o teu dia, estás de parabéns. Amanhã, entras como efetivo ali na oficina”, onde eu já ajudava, trabalhava desde os meus 8 anos. Eu trabalhava na forja, trabalhávamos três, eram quatro horas de manhã, das 8 e tal até à 1 da tarde, almoçávamos e de tarde trabalhávamos na oficina. Portanto, eu estou marcado por toda essa vivência, toda essa pobreza.
A minha obra, na sua grande parte, é de Trás-os-Montes. Tenho essa ligação muito profunda. Quando vou para o norte, para Vila Flor, chego ali àquela zona do Douro, margem esquerda do Douro, que já é Terra Quente, e o meu corpo sente-se como a regressar ao seu sítio.
Como é que começa o seu percurso literário?
Eu comecei a escrever uns poemas com 10 anos. Mais tarde, escrevi um livro, que a certa altura emprestei a uma jovem estudante, de Bragança, e ela submeteu-o a um concurso no liceu. Ganhou o prémio com o nome dela. O livro acabaria por ser publicado e já ia na segunda edição quando deu o que está aqui ilustrado [mostra primeira página do jornal A Capital com a denúncia de roubo da autoria], em 1968, uma entrevista com Júlio Fernandes sobre esse livro “Libelo Acusatório”, que acabou por ser publicado com o meu nome e com o prefácio de José Saramago. E por cá fiquei a trabalhar na publicidade. Depois, passei para a Latina, do grupo Borges & Irmão, com o Costa Dias e com o Alexandre Cabral. Estava lá o Tengarrinha também. Fui entrando, digamos assim, de tal maneira na vida política que passei a pertencer à Comissão de Escritores de apoio à Comissão Democrática Eleitoral (CDE). A Sociedade Portuguesa de Escritores tinha sido destruída em 1964 por causa da atribuição do prémio ao Luandino Vieira, por causa do Luuanda. Então, formámos a Associação Portuguesa de Escritores com o José Gomes Ferreira à frente da direção e é a partir daí que sou convidado para a CDE. Fui responsável por metade da cidade dentro da Comissão Executiva. Fiz a minha vida digamos que em paralelo com a vida do trabalho, com a vida social e a vida cultural. Foi aí que eu entrei para o Partido [Comunista Português], em 1971, quando fez 50 anos.
E como é que se dá a sua entrada no PCP?
Foi a convite do José Saramago e do Areosa Feio, que em março de 1971, depois daqueles dois anos a trabalhar intensamente na CDE e já como responsável de bases, fui convidado para integrar o PCP.
Acaba por ser detido a poucas semanas da revolução.
Foram detidos quase 50 quadros dirigentes e militantes da CDE, aqui na região de Lisboa, em 6 de abril de 1974. Estávamos numa reunião em Benfica. A nossa cobertura legal é que estávamos a formar uma cooperativa cultural. Fomos todos presos nas instalações que, eventualmente, iriam ser uma cooperativa. Fomos metidos nas Ramonas, que eram aquelas carrinhas azuis, e fomos levados, homens e mulheres, pela PIDE e pela PSP para o Governo Civil. Estivemos lá até à meia-noite. Depois, fomos transportados para Caxias. Eu fiquei no isolamento até 21 ou 22 de abril. Obviamente, fui interrogado pelo Inspetor Tinoco [da PIDE] e a certa altura, numa noite, desatei a gritar que eu tinha estado em África na guerra e que tinha as marcas e que não podia estar a fazer ali a estátua. E um dos dois agentes da PIDE que estavam a vigiar durante todo o dia e noite saiu da sala e quando voltou, depois de ver o meu historial, mandou sentar-me. E eu disse para mim: “pronto, já não levais nada”.
Porque o meu medo era ser torturado de tal maneira que a certa altura pudesse pôr em causa aquilo de que eu era detentor, o conhecimento que eu tinha de como as coisas estavam a andar. Eu tinha recebido por parte de um oficial da Marinha, nessa altura, um documento já com algumas ideias desenvolvidas sobre aquilo que tinha saído do Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, em 1973. Participei com o Herberto Goulart numa reunião com oficiais e sargentos milicianos dos quartéis de Lisboa, e também nos explicaram numa casa, numa reunião completamente clandestina, o que se estava ali a preparar. Portanto, o nosso medo nos interrogatórios não era pertencermos ao PCP. Disso não nos acusariam. O meu medo é que eu estava a par, com mais alguns como o Carvalho, o Tengarrinha e o Herberto Goulart, de tais planos.
Tive a sorte de sair no dia 24 às 20 horas de Caxias. E nessa noite ainda fui reunir numa cooperativa e fazer o ponto da situação. Fui-me deitar e eram 5 da manhã [do dia 25 de abril] quando tocou o telefone e uma voz feminina disse-me: “Olha, temos reunião [da CDE] na [Avenida] Infante Santo, número tal, a partir das 9 da manhã”.
E o que significou para si o processo revolucionário?
Eu trabalhei na publicidade até 1975. Para além de assumir as minhas responsabilidades, fazer as sessões, fazer a agitação, coordenar com todos, em 1969, houve duas palavras de ordem fundamentais da CDE: ir para as coletividades ou para o sindicalismo. Eu escolhi as coletividades. Estive sempre ligado ao associativismo. Tinha publicado quatro livros antes do 25 de Abril. Então, em 1975, fui à Rua Castilho ter com os militares da CODICE e ofereci-me para trabalhar com eles. Já lá estavam o Carlos Paredes, o [Marcelino] Vespeira e outros e eu fui integrar uma equipa desse trabalho cultural em que resultou fazer a cobertura das campanhas de dinamização, primeiro no distrito de Viseu. Fiz entrevistas nas aldeias. Levavam, por exemplo, um doente, na Serra da Gralheira, durante 6 km até à estrada nacional para o poder levar para Castro Daire ou para outro hospital no Porto. E não havia estrada, havia um caminho. Foi com os militares que eles construíram a estrada, para poderem tirar os doentes das próprias aldeias. Tudo isto foi um fervilhar de movimento. Quando o Sá Carneiro e o Freitas do Amaral disseram “com os militares não se trabalha”, entrevistei um homem que era Presidente de Junta do PSD que dizia “era só o que faltava, então eles é que nos estão a abrir as estradas e trazem as máquinas”.
Publiquei também outro livro chamado “Perspetivas de Libertação no Nordeste Transmontano” também sobre as Campanhas de Dinamização do MFA e fui requisitado pelos militares na CODICE,na Rua Castilho, ao Ministério da Comunicação Social e passei de criativo e publicitário para animador, escritor, intervindo nas realidades como era possível. Tínhamos equipas de teatro, tínhamos música, tínhamos artes plásticas. Eu fiz desde logo um livro chamado “Das árvores mortas à reforma agrária”, foi a primeira incursão que eu fiz no Alentejo, no distrito de Beja. E depois vim a fazer a “Memória Alentejana”.
Teve um papel destacado na vida autárquica da cidade como presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. Como é que olha para a cidade hoje?
Acho que a cidade começou a ser destruída depois da experiência dos anos 90 da nossa coligação [PCP] com o PS com a qual a cidade ganhou muito. Havia da parte da direita a ambição imensa de conquistar o poder e, de facto, devido a algumas fragilidades nossas na condução das coisas, nomeadamente com João Soares, abriu-se portas para a direita ganhar e perdemos com Santana Lopes a maioria na Câmara Municipal. O negócio na cidade foi apoiado e desenvolvido pelo PSD e pelo PS. Com a alteração nas Juntas de Freguesia que eram 53 e passaram a ser 24, com a concentração de poder de meios e, sobretudo, através do turismo… Foi o início dos grandes negócios, foi de facto a usurpação, a ocupação da cidade. A expulsão dos mais velhos, nomeadamente, mas depois também dos mais novos. Ganha-se muito dinheiro, ganharam muito dinheiro. Muita corrupção. Tudo isso passou pelas mãos do Medina, tinha passado por António Costa. E continua a passar pelos presidentes que estão.
Dentro de uma vida sempre ligada ao associativismo como é que se dá o seu contacto com A Voz do Operário?
Com o conhecimento da indústria tabaqueira e dos tabaqueiros, do jornal A Voz do Operário. Para nós era um exemplo extraordinário de associativismo e de desenvolvimento político. Aquela frase célebre de Custódio Gomes, soubesse eu escrever e fazia um jornal, marcou a nossa vida. E também, no outro associativismo onde eu andava, no Imparcial por exemplo, na Maria Pia, na Meia Laranja, conheci muitos operários, carregadores e descarregadores do porto de Lisboa. Preferi sempre trabalhar com a população, fosse nas freguesias, fosse nas empresas, eu optei pelo associativismo, mas nunca larguei a escrita sobre a vida operária e a vida do trabalho, com essas entrevistas e com a criatividade dos romances e com a poesia, etc.
Tinha contactos com A Voz do Operário ainda antes do 25 de Abril. Depois, em fevereiro de 2007, fui eleito presidente da direção d’A Voz do Operário. Foi um desafio imenso. Creio que a ação que desenvolvemos acabou por ser positiva. Aquilo que A Voz do Operário significou e continua a significar, e bem, com Manuel Figueiredo e com outros eleitos que entraram. A Voz do Operário tem-se desenvolvido bem. E é profundamente necessária a nós, todos nós. E à cidade de Lisboa.
E o que acha de ser distinguido como sócio honorário?
Eu não estava à espera de nada. Nunca andei atrás de prémios. Aquilo que era para mim fundamental era ter vindo de uma região de pobreza em que metade ou mais de metade da população útil que trabalhava no distrito de Bragança emigrou, naqueles anos. E, portanto, para mim, que conheci muito bem a pobreza e conheci muito bem o que era passar fome e o que era viver em muito más condições, o importante era entrar na luta. Sinto que há um reconhecimento da minha postura.