Entrevista

Justiça

Sandra Esteves: “Sem dinheiro é difícil ter acesso à Justiça”

Sandra Esteves alerta para as barreiras que separam boa parte da população do acesso à Justiça, incluindo a necessidade de melhorar a condição dos advogados oficiosos. Simultaneamente, a advogada defende que o avanço das ideias de extrema-direita pode levar à primazia da repressão sobre o princípio da ressocialização.

De que forma é que as desigualdades sociais se refletem no acesso à Justiça?

De uma forma gigantesca porque o nosso sistema de acesso ao Direito é um sistema que não garante o acesso ao Direito. Basicamente é isto. E porquê? Porque uma pessoa tem de ser quase indigente para poder ter acesso ao Apoio Judiciário. Para ver concedido o apoio judiciário, o agregado familiar do requerente tem de ter mensalmente um valor de rendimento igual ou inferior a 345 euros. E se tiver bens móveis ou imóveis registados em nome próprio, desconta. É muito, muito difícil ter o Apoio Judiciário. E, por outro lado, as tabelas de taxas de justiça são impraticáveis. Se alguém intentasse um processo contra mim, e eu tivesse que pagar um advogado, e taxas de justiças, sem Apoio Judiciário, não sei se conseguiria chegar a meio do processo, tal é o valor das tabelas aplicadas nas taxas de justiça. E, portanto, se a pessoa tiver dinheiro é muito fácil ter acesso, tanto ao advogado como à Justiça.

E os advogados quando trabalham como oficiosos também recebem muito menos. Pode ser um problema?

Configura um problema. Para começar, as tabelas de honorários de pagamento a advogados oficiosos não são revistas há quase 20 anos. Portanto, o valor que o defensor oficioso recebe é muito abaixo do que iria receber se estivesse a trabalhar num processo como advogado em prática individual, e se estivermos a falar das grandes sociedades de advogados, o valor triplica, no mínimo. É porque um advogado, por exemplo, que trabalha numa sociedade de advogados tem muito mais tempo, condições e apoio para estar a estudar um processo, para procurar jurisprudência, para trocar ideias com colegas, até porque é pago à hora e cobra o tempo gasto em reuniões, telefonemas, deslocações, o que não sucede com o patrono (defensor oficioso). Os processos são distribuídos em lotes. É certo que os advogados podem escolher o ramo do direito que querem trabalhar: administrativo, penal, família, por exemplo. Agora também é verdade que se os advogados têm contas para pagar, muito provavelmente vão ser obrigados a inscrever-se no maior número de ramos de direito possível e aceitar todos os processos que venham a ser-lhe distribuídos, provavelmente até naquelas áreas em que eventualmente poderão não estar tão à vontade, para poderem fazer face às contas e às despesas.

Por exemplo, muitos dos casos de violência doméstica são defendidos por advogados oficiosos.

Nesse ponto, para começar há um aspeto positivo: o facto de há uns anos ter sido alterada a lei de acesso ao apoio judiciário relativamente às vítimas de violência doméstica. Porque antes nem sequer havia presunção de escassez económica da vítima de violência doméstica e, tinha ainda que requerer o apoio judiciário, que em média pode demorar três meses se deferido e, agora já não. Agora tem acesso direto e presume-se a insuficiência económica e, portanto, têm acesso direto ao apoio judiciário, sendo certo que por exemplo se ao mesmo tempo estiver a correr um processo de divórcio, essa presunção já não se verifica, o que leva a situações dramáticas, nomeadamente na regulação das responsabilidades parentais e essa é uma das alterações necessárias e essenciais.

Agora, é evidente que uma coisa é ir a um escritório de advogados onde há advogados que trabalham só naquela área ou que trabalham muito naquela área. E outra coisa é estar dependente do patrono que lhe é atribuído, que lá está, pode ser, e será certamente um advogado com muito interesse e muito boa vontade, mas que, certamente não disporá dos meios, tempo e disponibilidade de outros colegas que por receberem o valor justo, ou até muitas vezes inflacionado (nas grandes sociedade de advogados) dispõem de condições que o patrono (defensor oficioso) não tem.

E o que decisões deviam ser tomadas para melhorar as condições dos advogados oficiosos?

Uma das formas e uma das mais rápidas e mais profícuas é rever a tabela de honorários. PE, por outro lado, é rever a forma e a fórmula de acesso ao Direito. Uma pessoa, para ter acesso a uma consulta com um advogado ou a um advogado que a represente em juízo, ter de fazer um requerimento à Segurança Social e vai demorar no mínimo 3 meses para dar uma resposta, com a agravante de o deferimento do acesso à justiça estar dependente de uma fórmula numérica pré-estabelecida, desligada da realidade e das pessoas – o que, não garante o acesso universal e constitucionalmente consagrado à justiça. Portanto, a pessoa fica três meses, no mínimo, sem poder fazer nada, fica bloqueada. Partindo do princípio que depois tem direito a um defensor oficioso, não é? E se não tiver? Ou arranja forma de pagar as taxas de justiça e os honorários ou fica sem direito a defesa e/ou sem acesso ao direito.

Outra das coisas que se pode fazer é: aumentando a tabela de honorários, há mais defensores oficiosos, havendo mais defensores oficiosos não é necessário haver lotes [de processos] tão grandes e pode-se distribuir melhor. E se os advogados em vez de terem de trabalhar em 50 processos trabalharem em metade dos processos, têm muito mais tempo, conseguem estudar, dedicar-se ao patrocínio de forma que, efetivamente, se possa garantir uma justiça igual para todos.

Podemos dizer que a Justiça é independente do poder político e das elites económicas? O facto é que as leis emanam do poder político, donde estão arredados os trabalhadores e os grupos mais marginalizados da sociedade, e basta olhar para a população prisional para perceber que camadas sociais é que enchem as prisões.

Se for a uma cadeia, e eu passei anos a visitá-las porque eu só fazia Direito Penal, por muito que digam o contrário o que se vê lá dentro é inequívoco. Eu acho que a questão não passa apenas pelas leis porque se olharmos para a Constituição da República Portuguesa, está tudo lá: o direito à habitação, o direito à defesa condigna, o direito à igualdade, o princípio da igualdade, está tudo na Constituição e nós temos outras leis até que depois emanam da Constituição, nomeadamente no Código Penal e no Código de Processo Penal, que já contém esses princípios. Tem a ver com duas coisas, primeiro com a correlação de forças que nós temos na Assembleia da República, quem é que representam, porque são no fundo quem cria e aprova as leis. Se tivermos na Assembleia da República uma maioria de deputados que não representam, não contemplam, não têm interesse em defender esses direitos e esses cidadãos, mas sim certos interesses e grupos económicos, que nem sequer precisam de ser defendidos porque têm já lucros milionários…

É óbvio que se tivéssemos leis que obrigassem, por exemplo, à regulamentação do mercado da habitação, dos arrendamentos, do acesso universal e igualitário ao direito obviamente que melhorava a situação das pessoas, mas essas leis não existem, não é porque não haja propostas para elas, para elas serem aprovadas. É porque as forças maioritárias que estão em representação dos cidadãos na Assembleia da República são contrárias a esses interesses.

Acha que o contexto perigoso de ascensão da extrema-direita pode ter reflexos também na forma como os juízes interpretam as leis?

Em primeiro lugar, é óbvio que um juiz, apesar de não poder ser militante de um partido político, é um cidadão e vê televisão, lê jornais, portanto, é óbvio que, apesar de ter a obrigação de interpretar a lei da forma mais isenta possível, não deixa de ser um ser humano. E acredito que seja essa a intenção da maior parte dos juízes. Agora no Direito, muitas vezes, seja o juiz, o procurador ou o advogado, consegue-se sempre encontrar jurisprudência ou doutrina, ou seja, interpretações da lei, umas que vão no sentido do que pretende o A, outras que vão no sentido do que defende o B. Se o juiz entende que aquela pessoa que está à frente dele – e vamos partir do princípio que estamos a falar de Direito Penal, que é uma pessoa e que é um arguido – cometeu aquele crime ou não, e depois a questão é o porquê e qual é a convicção e onde é que ele foi buscar essa convicção. E aí é que entra a parte subjetiva do julgamento.

Porque em teoria essas vertentes políticas não podem e não devem entrar na magistratura, muito menos ter peso nas decisões. Mas o que é certo é que, em muitos casos acabam por estar lá, subjacentes, por isso é que, em termos culturais ainda hoje se veem situações, como há pouco tempo se viu, onde uma mulher, por exemplo, vítima de violência – neste caso foi na aplicação de uma suspensão provisória de um processo de violência doméstica, muito badalado também na comunicação social – o processo foi suspenso, com a condição do agressor levar a vítima ao teatro e levá-la a jantar e depois juntar os comprovativos dos pagamentos do jantar e do teatro no processo e o processo ficava suspenso desde que ele, o agressor, naquele período de tempo não voltasse a ter atos comportamentais violentos, sendo certo que nestes casos não há sequer a obrigação de a vítima estar representada por advogado. Há ainda aquela outra decisão muito conhecida de um juiz que diz a uma mulher que se pôs a jeito porque veio com uma mini-saia “em plena coutada do macho latino” e, portanto, o que é que ela estava à espera?

Isto são sentenças e acórdãos que existem e que existiram e têm a ver com uma cultura patriarcal. E, portanto, o que eu quero dizer com isto é que se a cultura patriarcal e se aquilo que é a sociedade e a conjuntura que se vive está impressa nestas sentenças, obviamente que esta parte que nós vivemos em termos de conjuntura perigosa política também não está isenta de ser refletida nas mesmas.

Uma das ideias que em teoria fundamenta o nosso quadro penal é a da recuperação e integração social. Não que isso seja propriamente levado à prática, mas há perigosos discursos que querem legitimar o caminho contrário.

Os perigos são grandes e graves. Se nós olharmos para a lei, esta é clara. O que se diz que diz em termos de Direito Penal é que os fins das penas, ou seja, as penas que são aplicadas às pessoas têem o fim de as ressocializar, não são para retaliar. Portanto, não são para reprimir a pessoa, são para ressocializar, ou seja dar-lhes ferramentas e fazê-las capazes de se reinserir na sociedade.

Portanto, a finalidade última de aquela pessoa ser punida é ela poder ser reintegrada na sociedade. Se for a qualquer cadeia de Portugal, qualquer uma, não importa, vai perceber imediatamente que qualquer pessoa que saia, qualquer cidadão que saia dali vai ter uma grande dificuldade nessa ressocialização. Porque ele próprio dentro da cadeia, por exemplo, quer trabalhar, não consegue. Quer estudar, também não consegue. O parque de estabelecimentos prisionais, por exemplo, está completamente degradado. Há coisas que se passam ali que não lembram a ninguém.

Se é este cenário dramático de não termos ressocialização nenhuma, nem dentro da cadeia, nem depois, imagine uma pessoa que é arguida, ficou presa a cumprir uma pena de cinco anos. Sai aos três porque teve bom comportamento. Quando sai, teoricamente devia ter este tal apoio para a ressocialização. A única coisa que tem é uma técnica do Instituto de Reinserção Social, que tem 500 processos e que não sabe para onde é que se há de virar. São 500 pessoas a quem tem que dar apoio, e não consegue ressocializar ninguém porque nem tem tempo, nem meios.

Se a isto acrescentarmos aquela história do ‘bom cidadão’, das ‘pessoas de bem’, e de tentar apontar o dedo a tudo o que sai dessa lógica de ‘pessoas de bem’, como se deixassem de ter mais-valia para a sociedade… Nós temos de perceber porque é que estas pessoas cometeram determinado crime. A verdade é que há muitas pessoas que nascem em bairros problemáticos, onde à volta há determinados tipos de atividade, por exemplo, tráfico de droga, que acabam por ser assumidos como “normais” para quem ali vive, porque a maior parte dos cidadãos que lá estão não tiveram acesso em condições de igualdade, a educação, habitação, não tiveram uma infância digna desse nome, tiveram sim de fazer o que podiam para sobreviver. E há muitos que, mesmo trabalhando e querendo desde tenra idade trabalhar, não têm oportunidades. E isso não significa que essa pessoa não mereça ser ressocializada e não mereça uma oportunidade.

É muito perigoso. E depois há a tentativa de criminalizar outro tipo de situações. Esta operação de fiscalização da PSP no Martim Moniz, quando se ouve o primeiro-ministro a falar, faz lembrar o Relatório Minoritário [filme] em que as pessoas eram detidas de forma preventiva antes de cometer um crime. Havia uma máquina que conseguia prever que determinada pessoa iria cometer um crime. A prevenção não é isto. Não estou a dizer que estamos num Estado de Polícia, mas também não estou a dizer que não estou preocupada com que cheguemos a tal.

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