O processo histórico iniciado em 25 de Abril de 1974 fez este ano o seu cinquentenário, dia de grandes manifestações populares, sinal de que a chama está viva, por muito que os adversários declarados e outros, disfarçados, tentem desfazer, denegrir e contrariar o significado histórico da nossa grande Revolução Democrática e nacional.
Uma das conquistas, que nasce com o 25 de Abril, foi o Serviço Nacional de Saúde. Na Constituição da República de 1976, no artigo 64º, consagra-se que “O direito à proteção da saúde é realizado pela criação de um Serviço Nacional de Saúde, universal, geral e gratuito (…)”.
A lei que dita a criação do Serviço Nacional de Saúde, nos termos da Constituição, foi aprovada na Assembleia da República, em 26 de junho de 1979, com os votos do Partido Socialista, do Partido Comunista e da UDP. É bom saber que votaram contra a lei os deputados do PPD e do CDS.
Citamos a alínea 2) do artigo 6º da Lei nº 56/79, de 15 de Setembro (Serviço Nacional de Saúde): «O SNS envolve todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e o tratamento dos doentes e a reabilitação médica e social.»
A lei que institui o SNS veio confirmar a necessidade de uma grande transformação e renovação dos recursos e serviços prestadores de cuidados de saúde, falhos e atrasados no regime fascista. A luta das populações e dos técnicos de saúde, do poder local, de sindicatos e de associações, reforçaram a consciência do direito à igualdade, na assistência e na saúde, que vem culminar no SNS.
O Serviço Nacional de Saúde é um conjunto de serviços financiados, organizados e prestados pelo Estado, abrangente, para toda a gente, em todos os domínios da saúde, acessível, sem condicionantes, apenas a necessidade. No entanto, esta última cláusula sofreu uma retração na lei do SNS, que não se enuncia no texto constitucional, ao estabelecer a possibilidade de vigorarem taxas moderadoras, como veio a acontecer.
O que caracteriza a essência do SNS é ser uma Organização Nacional de Serviços Públicos de Cuidados de Saúde, no sentido amplo, para toda a população, incluindo estrangeiros, cuja administração cabe ao Estado. Ora, é aqui que os partidos que votaram contra na votação final da lei, evidenciam a sua contrariedade. No projeto de lei alternativo, assinado por deputados do PSD, afirma-se que as linhas programáticas do seu modelo “procurará a convergência concorrencial entre os setores público e privado, com vista a uma socialização adaptável à realidade do país”.
Os progressos assistenciais para benefício do povo português, que resultaram do Serviço Nacional de Saúde, podem avaliar-se por índices objetivos de ganhos em saúde. A taxa de mortalidade infantil em 1960 é de 77,5 por mil, em 1960. Em 2012, é de 3,4 por mil. A esperança de vida à nascença, em 1971, é de 67,1 anos, em 2011, é de 79,8 anos. Sabemos que os índices validam também as condições de vida e os progressos científicos na esfera da saúde e da medicina, mas, sem dúvida, as prestações do SNS tiveram a maior relevância na melhoria da saúde e da vida das populações.
O SNS faz 45 anos de existência. A sua última grande prova de eficiência foi feita na epidemia de covid. Uma doença infeciosa nova, desconhecida, obrigou à intervenção dos serviços de saúde pública do SNS, numa corrida atrás do tempo, pondo à prova competências, profissionais da saúde, serviços públicos, educação sanitária, tratamentos hospitalares e vacinação em massa. O SNS funcionou, fez prova, em termos comparativos, com países mais desenvolvidos. O serviço público, universal, geral e não lucrativo.
O que faz um SNS saudável e eficiente? Uma organização de serviços para todo o país, planificados, administrados e financiados pelo Estado, envolvendo uma rede de Unidades de Saúde Familiares (USP), dotadas de recursos humanos, em número e qualidade, próximos da comunidade, com relação personalizada aos utentes. Uma saudável interação entre as Unidades de Saúde Familiar, de primeira linha, e os serviços hospitalares.
Uma rede de hospitais especializados e de serviços hospitalares diferenciados, bem apetrechados, com todas as especialidades médicas e técnicas de saúde, de acordo com os avanços da medicina. Estímulo à investigação, com maior destaque nos serviços universitários. Neste contexto funcional não deverá haver listas de espera cirúrgicas, nem falta de vagas nos serviços, nem SOs saturados de doentes, e profissionais exaustos, com horários inadequados.
Uma programação eficiente de uma rede de urgências médicas hospitalares, dispondo de recursos humanos indispensáveis, sem sobrecargas, com um serviço de emergência médica SOs, de primeira linha, sem falhas. A prestação de consultas de proximidade nos Centros de Saúde, em atendimento permanente, sem necessidade de recurso à urgência hospitalar.
A valorização da saúde mental e dos seus serviços especializados, na educação preventiva, na prevenção de dependências, no diagnóstico precoce de doenças mentais, no tratamento personalizado psiquiátrico e psicoterapêutico, em serviços hospitalares bem apetrechados e na comunidade. A reintegração e reabilitação, como prática assistencial regular, minorando a deterioração e alienação social.
Uma política apropriada de saúde pública preventiva, para todos os grupos etários, da infância à terceira idade, de saúde escolar, saúde mental e educação para a saúde das populações. Manter o programa de vacinação. Promover a saúde oral, acústica e visual. A utilização, pelos serviços públicos de saúde, de meios de comunicação e redes sociais para a pedagogia de estilos de vida saudáveis, contrariando e impedindo malefícios prejudiciais.
A formação programada e renovada de profissionais da saúde, médicos, enfermeiros, outros técnicos de saúde e assistentes operacionais, segundo as necessidades, as carências e as insuficiências detetadas em todo o país. O estímulo de carreiras profissionais bem remuneradas, com trabalho de equipa multiprofissional, satisfação profissional e progressão na carreira, evitando as perdas de recursos humanos, por emigração para o estrangeiro ou por procura de serviços privados lucrativos. As lutas sindicais de médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e outros profissionais do SNS expõem à luz do dia as poupanças avaras do governo nas remunerações dos que são a alma dos serviços de saúde públicos.
A acessibilidade a medicamentos, tendo em conta os avanços da medicina e das inovações farmacológicas, promovendo a educação dos utentes para o seu uso de acordo com as prescrições médicas e orientação farmacêutica.
Este relato, certamente não exaustivo, enuncia verdades consensuais, de forma genérica, sem particularizar. Enuncia-se o ideal, o que devia ser, como meta de otimização das práticas no SNS, se se dispusesse dos recursos humanos e outros, que, infelizmente, faltam muitas vezes. As falhas são vividas com angústia, levam a sobrecargas de trabalho para muitos profissionais, com insuficiências numa área nobre, que deve cumprir, num nível alto, as prestações de que carece a população. A população reage por vezes. E é benéfica a luta que se trava para reclamar contra falhas e insuficiências, pois os utentes devem ter voz ativa e participação em revindicações do direito à saúde.
Fala-se de crise no SNS. Publicitam-se casos de falhas e insuficiências. Há quem diga mesmo: como salvar o SNS? Qual a qualidade da administração dos serviços de saúde públicos? Que meios financeiros os governos asseguram para metas razoáveis, para que o SNS recupere, se aperfeiçoe e progrida? Que cative recursos humanos, que forme profissionais? Ou será que o recurso à oferta particular, que brotou em grande profusão no país, com hospitais privados, seria uma real necessidade assistencial para a maioria da população? Muito acertadamente, tudo indica que essa privatização concorrencial de serviços, já acenada com as gestões privadas de hospitais públicos, a retoma pelas Misericórdias de serviços públicos e o crescimento de instituições privadas de saúde, especialmente hospitalares, vêm enfraquecer o SNS, introduzindo uma métrica lucrativa mercantil, no bem que é a saúde. Eis que sobressai a política de saúde de sucessivos governos, tanto do PS como do PSD, em que se implantou, de um modo ou outro, uma política de desgaste do SNS, sendo o Estado e os governos, mais nitidamente nas duas últimas décadas, os responsáveis pelo descaso de importantes fatores do SNS, e a promoção empresarial privada do sector da saúde.
Um dado inequívoco de insuficiência do SNS, por carência desprevenida de médicos de Medicina Geral e Familiar, é o facto de 1 milhão e meio de portugueses não terem médico de família atribuído, ficando sujeitos a uma assistência médica aleatória e incerta.
Um paradoxo, seria imaginar no nosso país, haver lugar para o SNS e espaço, também, para o SPS, «Sistema Privado de Saúde», mal entrelaçados, de um modo geral, numa realidade consumada e sem retrocesso. Aliás, não há propriamente um “sistema” privado, pois as suas instituições são concorrenciais entre si. As disparidades, na administração, na vocação e no financiamento, separa duas realidades. A concorrência pode ser leal ou desleal, mas deixa
sequelas, especialmente no caso em que os governos deixarem que a livre concorrência possa reduzir, paulatinamente, como vem acontecendo, o valor do SNS. Valorizam-se as seguradoras, valoriza-se o capital financeiro, retraído no sector produtivo, e que procura lucros nos serviços de saúde empresariais. A medicina artesanal privada declina também. A meta do lucro é o primum movens, numa prática produtiva, contraditória com valores intrínsecos da medicina.
Nos 50 anos do 25 de Abril, nos 45 anos do SNS, a consciência racional sobre as condicionantes que motivam retrocessos nos alicerces e acabamentos do serviço público de saúde, obriga a uma reflexão política, ideológica e ética sobre o sistema de saúde, sobre o nosso Serviço Nacional de Saúde. Para que não se ache o facto consumado irreversível, sem terapia para a renovação e recuperação da saúde do nosso SNS.