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Dificuldades na saúde reflectem falência da política do governo

A demora a substituir a ministra da Saúde Marta Temido, que apresentou a demissão no dia 30 de agosto, tem motivado discursos acesos dos partidos da oposição à direita do PS. António Costa garantiu que, com a substituição de Marta Temido, apenas muda a “personalidade” ou poderá mudar “a energia ou o estilo”: a política de saúde permanecerá.

”Os horários prevêem sempre turnos extraordinários e os enfermeiros são continuamente obrigados a seguir no fim turno, por não haver quem os substitua”

Na opinião de André Gomes, dirigente do Sindicatos do Médicos da Zona Sul e de Célia Matos, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, é exatamente no conteúdo da política de saúde que reside a solução dos problemas dos serviços de urgência nos hospitais públicos portugueses e do próprio Serviço Nacional de Saúde.

Escassez de recursos humanos; degradação das condições de trabalho; transferência de recursos financeiros para o privado; desinvestimento e alienação para o negócio da saúde de cada vez mais serviços que o SNS poderia cumprir com menos custos são alguns dos problemas apontados pelos dois profissionais – uma visão de dentro do próprio SNS que, na opinião dos dois dirigentes sindicais, parece encaixar num processo premeditado para o comprometer.

A mediatização das dificuldades de funcionamento dos serviços, noticiados como situações de caos recém-instaladas, nem é nova e é uma consequência de opções adotadas nos últimos anos, referem. “As situações agora noticiadas já existiam, não são de agora as dificuldades em formar escalas. Há equipas a funcionar com metade dos efetivos e o que a ministra disse para a televisão, associando o problema às contingências das férias, é mentira”, diz o médico de saúde pública. “Já há uma escassez atroz de pessoal. É insano manter o tratamento adequado aos utentes quando não há profissionais.”, precisa André Gomes.

“A situação atinge os serviços de urgência”, refere André Gomes: “os conselhos de administração tentam resolver a falta de médicos do quadro recorrendo a prestadoras de serviço e a contratação de médicos tarefeiros para completar as escalas de urgência ou dos seus serviços. Além de muitas vezes se gastar muito mais do que se gastaria a contratar médicos, o tarefeiro só faz aquele turno de urgência, não faz consulta, não segue o internamento dos doentes que porventura interna. É um serviço pago a peso de ouro, que depois não se reflete numa qualidade contínua.

“Nas colocações de especialistas durante os últimos 4/5 anos”, exemplifica André Gomes, “é cada vez maior o número de vagas por ocupar. o SNS deixou de ser atrativo para os médicos. Formam-se muitos, mas não se fixam no SNS e optam pelo privado e emigração”.

Dados da DGAEP/SIOE, referidas num estudo recente do economista Eugénio Rosa, revelam que a perda do poder de compra da remuneração mensal líquida dos médicos do SNS, entre 2011 e 2022, é da ordem dos 18,3%, de 10% no caso dos enfermeiros, de 9% no caso dos Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica.

“Batemo-nos pela revisão das grelhas salariais, pela valorização da carreira, estagnada nos últimos anos, e pelas condições no exercício da profissão, como a sobrecarga e o excessivo trabalho extraordinário. De resto, a ministra nunca aceitou reunir com o nosso sindicato, só recentemente se iniciou o período de negociações”, diz Célia Matos.

Por exemplo, refere o médico, “a Dedicação Exclusiva, que permitia fixar muitos profissionais no SNS, caiu durante o período da Troika”, com o ministro de Passos Coelho, Paulo Macedo. “Este governo nunca aceitou reverter” a norma responsável pela fixação de médicos no SNS.

Ainda no que se refere à fixação de profissionais no SNS, André Gomes dá outro exemplo: “O internato médico devia contar como primeiro escalão da carreira, pois o novo médico já fez o seu curso, o seu mestrado e está a tirar a sua especialidade médica, a trabalhar ao lado dos seus orientadores. É uma forma de garantir que quem finalize o seu curso, fique em Portugal e tire a sua especialidade no SNS”. Muitas das vagas para formar especialistas estão a ficar vazias, e muitos recém-formados “estão a optar pelo estrangeiro para fazerem a sua especialidade”.

No caso dos enfermeiros a falta de perspetivas na carreira e os desincentivos à permanência no SNS parecem igualmente evidentes. Começa logo, refere a dirigente sindical, pelo absurdo: “Um enfermeiro para chegar ao topo da carreira necessita de ter 100 anos de profissão”.

Neste momento, sindicato e Ministério estão em processo negocial “sobre a reposição dos pontos que ditam a evolução na posição na tabela remuneratória da carreira profissional, questão essencial para reter os profissionais no SNS, refere Célia Matos. “Em 2011, no tempo de José Sócrates, com a ministra Ana Jorge, foram criadas uma nova carreira e uma nova grelha salarial. Havia enfermeiros a ganhar abaixo do salário mínimo que foram então aumentados ligeiramente. Esta subida salarial foi considerada uma progressão, que faz perder pontos, e não um ajuste. Com a perda de pontos, apagaram perto de dez anos de exercício profissional. Enfermeiros há mais de 20 anos ganham menos do que um recém-formado”. Outro exemplo, refere, é a diferença entre o contrato em funções públicas e o contrato individual de trabalho (CIT). Como a atribuição de pontos depende da avaliação, que não é obrigatória para quem tem CIT, não se ganham pontos e não se sobe na carreira”.

Também em matéria de organização dos serviços, a gestão dos hospitais peca na “desregulação de horários”. Os horários, diz Célia Matos, “saem logo com turnos extraordinários” e os enfermeiros são “continuamente obrigados a seguir no turno, por não haver quem os substitua”. Ora mais de 80% dos enfermeiros são mulheres e “muitas profissionais em idade de ter filhos, abandonam a profissão”. A situação repete-se com os médicos: “Parte-se do mau princípio de que o profissional tem que fazer logo à partida horas extraordinária”. E, como os tarefeiros não têm de declarar as férias, os médicos muitas vezes “são surpreendidos, à hora de serem substituídos”.

“O setor privado não tem negócio se o SNS responder”, sustenta Célia Matos. Na pandemia, a resposta daquele “foi quase nula”. Os privados, defende, “querem os exames complementares de diagnóstico, cirurgias”, por serem lucrativos. André reforça: “Na fatia do OE aplicada à saúde, 40% é injetado em privados. Para ressonâncias magnéticas, exames de TAC. Praticamente toda a hemodiálise está na mão de clínicas privadas”. No período pandémico, diz o clínico, apesar da resposta dos hospitais privados ser quase nula, “a testagem da covid-19 foi entregue aos laboratórios privados”.

Outro exemplo, salienta o médico, são as cirurgias em atraso: “É uma forma de privatização dentro do próprio hospital. Há os tempos de cirurgias públicas e uma espécie de cheque cirurgia, onde o cirurgião ganha mais, à peça, operando utentes fora do tempo do bloco operatório dedicado ao público, mas no tempo dedicado ao privado, utilizando os recursos dos hospitais públicos. Este modelo, lembra André Gomes, “foi seguida pelo Serviço Nacional de Saúde Inglês e levou à sua ruína, ao desvirtuar o sistema, divide os profissionais”.

Célia Matos alerta para a tentativa de denegrir o SNS: “Os Hospitais de Loures, Vila Franca e de Braga que tinham gestão privada e passaram para a gestão pública estão a tentar, por indicação da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), contratar enfermeiros com propostas de 40 horas de trabalho, a 1200 euros, quando nas outras instituições do SNS o valor é o mesmo, mas para as 35 horas. Isto é aconselhar os enfermeiros a não aceitarem contratos com estes hospitais. É uma tentativa de criar a falsa ideia de que no tempo das PPP é que a gestão era boa, quando sabemos que que havia um clima de grande intimidação em relação aos profissionais, e sobrecarga de trabalho”, conclui.

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