Em 1960, a Casa Branca declarava que «o único meio previsível de alienar o apoio interno [à Revolução cubana] é através (…) da insatisfação e das dificuldades económicas». O Memorando Mallory, como ficou conhecido o documento secreto, marcava o azimute para asfixiar na infância o exemplo da primeira revolução socialista no «pátio traseiro» dos EUA, a América Latina, «Conclui-se», continuava, «que todos os meios possíveis devem ser rapidamente implementados para enfraquecer a vida económica de Cuba. (…) Uma linha de acção que, sendo tão hábil e discreta quanto possível, cause as maiores dificuldades, negando dinheiro e abastecimentos a Cuba, para diminuir os salários monetários e reais, provocar a fome, o desespero e a queda do governo». Sessenta e quatro anos volvidos, as sucessivas administrações dos EUA só se podem orgulhar de terem atingido um objectivo parcial: provocar sofrimentos indescritivelmente cruéis a milhões de cubanos, mas, computo geral, a estratégia falhou: a Revolução vive e, contra todas as probabilidades históricas, o seu povo resiste.
A poucas semanas do início do mandato de Trump, multiplicam-se as dúvidas sobre que direcção dará a nova oligarquia ao imperialismo: paz na Ucrânia ou guerra no Irão? Détente na Coreia ou escalada na China? Guerra comercial ou guerra nuclear? Revoluções coloridas ou intervencionismo por procuração? No que a Cuba diz respeito, contudo, a única dúvida que resta é o que mais poderá fazer Trump que não tenha ainda feito. Infelizmente, o leque das possíveis respostas é estreito: já não restam muitas balas na pistola do imperialismo e, se é verdade que as últimas munições podem ser as mais perigosas, também são, historicamente, mesmo as últimas.
Recentemente percorri quase toda a ilha e pude constatar em primeira mão os efeitos de 64 anos de bloqueio, assédio e terrorismo contra o povo cubano. Falei com pessoas que agonizam com dores insuportáveis porque não há medicamentos. Dormi em dezenas de casas de famílias humildes infernizadas por constantes apagões e falta de alimentos básicos. Conheci investigadores, cientistas e artistas impedidos de partilharem o seu trabalho com o resto do mundo. Vi como até as coisas mais simples, como apanhar um transporte para ir trabalhar, comprar um pacote de leite ou cozinhar o jantar, se convertem em autênticas odisseias para a imensa maioria dos cubanos. Conheci centenas de pessoas separadas dos seus filhos, pais e irmãos por uma emigração imposta a partir do exterior. Que não sobrem dúvidas: a principal explicação para o complexo quadro que Cuba enfrenta é o injustificável e ilegal bloqueio que os EUA continuam a impôr a Cuba e que já mereceu a condenação de 30 resoluções da Assembleia-Geral da ONU. Um bloqueio que é manifestamente ilegal segundo a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Políticos, Económicos e Sociais e à luz de toda a legislação internacional vigente aplicável.
É difícil conceber a dimensão estratosférica do bloqueio contra Cuba. Numa entrevista recente, o economista Jeffrey Sachs, insuspeito de simpatias comunistas, calculava que o bloqueio estado-unidense seja responsável por uma redução de 75% do potencial económico cubano. Em 64 anos, o bloqueio custou a Cuba mais de 150 mil milhões de dólares. Traduzido por miúdos, o prejuízo causado por apenas 25 dias de bloqueio equivale ao custo de todos os medicamentos básicos oferecidos pelo Estado à população durante um ano inteiro; oito horas de bloqueio correspondem ao custo de todos os materiais didácticos da Escola pública num ano; 18 dias de bloqueio perfazem o custo anual da manutenção do sistema eléctrico e as perdas causadas por quatro meses de bloqueio dariam para alimentar toda a população da ilha durante um ano.
O bloqueio dos EUA contra Cuba é um complexo emaranhado de 30 de leis unilaterais, coercivas e extra-territoriais em que se incluem a lei Torricelli, de 1992, a lei Helms-Burton, de 1996 e a inclusão de Cuba na Lista dos Países Patrocinadores do Terrorismo, desde 2021. No seu conjunto, estas leis estão desenhadas para impedir Cuba de se financiar e de comprar e de vender seja o que for, a quem quer que seja. Qualquer empresa ou banco, independentemente da sua origem, que decida forjar relações comerciais normais com Cuba arrisca-se a perder o direito de permanecer no mercado, no território dos EUA, a perder o direito a usar os seus instrumentos financeiros ou mesmo a ser alvo de sanções económicas. Por exemplo, de acordo com o título III da Helms-Burton, qualquer empresa do mundo que venda combustível a Cuba deve ser alvo de sanções económicas dos EUA. Por isso, a grande maioria dos fornecedores mundiais de matérias-primas, alimentos, medicamentos, energia e software vêm-se impedidos de vender ou comprar em Cuba. Quem aterre ou atraque em Cuba é alvo de sanções: qualquer navio que zarpe de Cuba fica impedido de voltar a aportar nos EUA; mesmo um turista português que hoje visite Cuba fica banido do sistema de isenção de vistos, na prática, impedido de visitar os EUA. Corolário directo deste castigo colectivo, o preço de tudo o que chega a Cuba é o dobro, o triplo e, em alguns casos o quádruplo, do preço que teria se não existisse o bloqueio. Um exemplo prático: o preço do contentor num cargueiro rumo à Europa ronda os 1300 euros se sair de Santo Domingo, na República Dominicana, e 2500 se sair de Havana.
Esta tremenda injustiça resulta-se em contradições insuportáveis: no Centro de Engenharia Molecular de Cuba, um dos melhores do mundo, as máquinas que avariam não podem ser substituídas; Cuba produziu cinco vacinas contra a Covid-19, mas não consegue comprar seringas. Os cientistas cubanos vêem-se impedidos de registar patentes e publicar em revistas científicas. Em Cuba há crianças que morrem por que o país está impedido de importar medicamentos oncológicos. É isto o bloqueio.
Após uma tímida abertura durante a administração Obama, o bloqueio endureceu-se exponencialmente sob a égide do primeiro mandato de Trump, que aprovou 243 novas medidas para destruir a economia da ilha. Entre elas, merece destaque a inclusão de Cuba na infame Lista dos Países Patrocinadores do Terrorismo, uma mentira tão absurda que seria risível, não fosse tão trágica. Ao contrário dos EUA, Cuba nunca exportou terrorismo. Cuba é, sim, exportador de paz, afirmando-se como capital regional de negociações de paz; médicos, que partem para todas as geografias do mundo, de Portugal às regiões mais remotas do Brasil para devolver a saúde e a visão a milhões e conhecimento, na forma da investigação e pessoal docente que tem ensinado milhões de pobres a ler e a escrever.
Apesar de todos os obstáculos, Cuba continua a poder orgulhar-se de garantir à sua população o que, 90 milhas a Norte, nos EUA, é ainda um privilégio dos ricos: saúde, cultura, educação. Mesmo ao lado do Haiti, onde a vida humana não vale nada e os cadáveres apodrecem nas ruas, Cuba é um dos países mais seguros, cultos e saudáveis do mundo. A Revolução criou um povo generoso, que visita museus, toca instrumentos musicais, pratica desporto, vai ao teatro e discute política nas praças.
Enquanto percorria o país de autocarro, perguntava-me amiúde quantos dias aguentaria Portugal naquelas circunstâncias: bloqueado, assediado, cercado, com falta de comida, sem electricidade, sem materiais de construção, sem combustível. Cuba aguenta assim há mais de sessenta anos. Devo aqui confessar a minha inveja: Cuba é um país a sério e a ilha pertence aos cubanos. Cuba não está nas mãos de nenhum senhor colonial e está a pagar pela verdadeira independência, como canta Sílvio, a teimosia de viver sem ter um preço. Já Portugal… às vezes não sei se será mesmo um país ou só um pretexto para um Estado nas mãos de outros Estados.
O que podemos fazer nós, portugueses, do nosso lado desta muralha de mar, para devolver aos nossos irmãos e irmãs cubanos, um pouco da generosidade e solidariedade que sempre ofereceram a todo o mundo, de Angola à África do Sul, da Bolívia a Itália? Podemos fazer planos para visitar Cuba, o país mais bonito, seguro, culto e surpreendente do mundo: ir a Cuba é toda uma lição sobre como se pode fazer muito com muito pouco e construir um país mais humano e justo que o nosso, onde as crianças são mais felizes porque delas fizeram a prioridade absoluta do Estado: uma terra onde e a vida humana vale mais que o lucro. Também podemos fazer chegar donativos e contributos à Associação de Solidariedade Portugal-Cuba que se encarrega de fazer a nossa ajuda chegar a Cuba.
Mas voltemos a Trump: durante a campanha, o oligarca multiplicou ameaças contra Cuba e, uma vez eleito, nomeou fanáticos da extrema-direita anti-cubana para posições chave. O exemplo mais significativo é Marco Rubio, um «falcão» anti-comunista, recém-nomeado secretário de Estado. Não faltará à administração Trump vontade de apertar ainda mais o garrote vil do bloqueio, mas surgirão dois problemas: não só estão praticamente esgotadas as sanções económicas e financeiras contra Cuba porque, muito simplesmente, já está praticamente tudo bloqueado, como, por outro lado, as sanções económicas dos EUA exigem tendência a perder relevância. Os EUA mantêm sanções contra cerca de 25 países de todo o mundo e começaram a surgir redes de comércio alternativas ao seu poder hegemónico. A entrada de Cuba nos BRICS e a intensificação das relações económicas com China e Rússia são prova disso.
A última bala no tambor do imperialismo é, portanto, o terrorismo. Durante muitos anos, o terrorismo estado-unidense coexistiu com o bloqueio económico contra Cuba. Na sequência da falhada tentativa de invasão de Cuba através da Baía dos Porcos, os EUA organizaram dezenas de atentados terroristas contra a ilha. Durante muitos anos, aviões da força aérea dos EUA sobrevoaram as cidades cubanas, disparando indiscriminadamente rajadas de tiros, bombardeando fábricas e incendiando plantações. Entre 1961 e 1963, os EUA mantiveram a Operação Mangusto, com o objectivo explícito de aterrorizar, mutilar e torturar civis na ilha, especialmente professores e os estudantes. O governo dos EUA chegou mesmo a aprovar a Operação Northwoods para organizar atentados terroristas em solo dos EUA, contra civis e militares, para depois culpar o governo cubano e justificar a invasão da ilha. Já na década de 80, os EUA introduziram uma variante de dengue hemorrágica em Cuba, levando à morte de 101 crianças, bem como a febre suína africana entre muitas outras doenças e pragas para destruir a agricultura e a pecuária cubanas. São incontáveis os exemplos de bombas americanas que explodiram em aviões e navios, como o da Cubana de Aviación 455 que, em 1976, matou 78 civis inoventes, ou a bomba colocada no navio La Coubre, em 1960, que vitimou mais de uma centena de pessoas. O terrorismo dos EUA contra Cuba matou pelo menos 3478 pessoas e deixou outras 2099 com sequelas para o resto da vida.
É previsível que Trump procure regressar a esta linha, aumentando brutalmente o financiamento e raio de acção da «oposição» de extrema-direita sediada em Miami e infiltrada na ilha. Mas o guião das «guarimbas» e das «revoluções coloridas» enfrenta outro enorme problema: Cuba já não pode ser surpreendida nem apanhada desprevenida. É certo que há uma parte da população que está zangada, cansada e vulnerável ao canto da sereia do neocolonialismo, mas a maioria social cubana continua com a Revolução. Isto é verificável dando um simples passeio por qualquer rua de Cuba: a absoluta liberdade de expressão leva ninguém se acanhe na hora de dizer o que pensam sobre o governo e a revolução. A estratégia terrorista contra Cuba falhará pelas mesmas razões que falhou sempre durante os últimos 60 anos: Cuba é indomável e não voltará a ser colónia. Cuba vencerá mais um presidente imperial porque o governo e o povo estão unidos e apostados num ambicioso conjunto de medidas de actualização do modelo económico socialista que aposta na produção de alimentos, na diversificação da indústria, no investimento em energias renováveis, na bancarização do comércio e na correcção dos muitos erros e distorções que, numa demonstração de enorme maturidade política, são publicamente reconhecidos. Cuba vencerá porque a democracia socialista é real: dos conselhos populares à presidência, os representantes do povo estão com o povo que agora atravessa o momento mais difícil de sempre.
Mas Cuba vencerá. Mais depressa secará o Malecón de Havana do que a revolução Cubana. Cuba não cabe na boca de nenhuma serpente de mar que canta Sílvio, por mais largas e transparentes que sejam os seus ventre, por mais infernos que tenham em digestão, por mais que apareça sempre outra maior. Cuba vencerá porque é, como também canta Sílvio, um canhão de futuro que ainda mata canalhas.