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A sociedade da igreja dos Anjos

Cheguei à igreja dos Anjos no dia 20 de fevereiro deste ano para começar uma investigação. Era jornalista do Setenta e Quatro, semanário que fechou portas um mês depois. Acompanhavam-me Ricardo Cabral Fernandes, colega e diretor, e Ana Luísa Melo, do Lisboa Invisível, que já conhecia algumas das pessoas que habitavam ali. A ideia – de moralidade dúbia, mas intenções sãs – era passar ali duas noites e decidir que rumo dar à investigação.

Após duas horas de conversa com alguns dos moradores mais antigos, disseram-nos de forma desinteressada que estava muito bem que ali estivéssemos, e que poderíamos ficar, ninguém nos ia fazer mal, mas que no dia anterior agentes de polícia lhes tinham dado 24 horas para sair dali sem qualquer alternativa. Nesse momento, uma carrinha dos serviços municipais chegou carregada de grades que foram despejadas contra as traseiras da igreja.

Através de apelos nas redes sociais foi possível chamar em pouco tempo algumas dezenas de pessoas, incluindo jornalistas e representantes políticos. O aparato foi suficiente para que o desalojamento fosse cancelado. Mais tarde, Filipa Roseta, vereadora municipal responsável pela pasta da habitação, terá afirmado que a operação de expulsão havia sido cancelada por não se ter garantido alternativa habitacional para todas as pessoas.

Fiquei até perto da meia-noite, apesar do frio. Dei uma volta à igreja antes de ir embora. Por esses dias haviam chegado algumas dezenas de migrantes senegaleses, gambianos e malianos que se instalaram precariamente no passeio entre o Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes e a igreja. Uma mulher de roupão e chinelos passeava o cão por ali. Ao passar por mim largou um desabafo, alto o suficiente para eu ouvir: “era regar isto tudo com gasolina, ficava o problema resolvido”.

Nos meses seguintes, até à chegada do verão, passei tardes e serões na igreja dos Anjos. Sem jornal, fiquei por afinidade, medindo a confiança através do que partilhavam comigo. Afinal, eram meus vizinhos e vizinhas. Cedo garantiram que se estivesse a estorvar mo diriam. O interesse jornalístico desapareceu. Decidi que não poderia, afinal, escrever o que fosse sobre a sociedade que se formou na igreja dos Anjos. Não queria ser um vampiro freelancer. Agora que a sociedade foi desfeita dou meio passo atrás para escrever este memorial.

A primeira coisa que me perguntavam sempre que lá chegava era: “já comeste?”. A segunda era: “tens um cigarrinho?”. Num dia de março, para celebrar o 28.º aniversário do morador mais novo do canto nordeste do jardim da igreja dos Anjos, convidaram-me para um churrasco. Uns foram buscar paletes para fazer o lume. Outros angariaram dinheiro e trouxeram asas de frango, salsichas frescas, pão, vinho, cebola e alho. Para a marinada, levei colorau, limão e azeite. Conseguimos comer tudo antes de chegarem doze jovens agentes da PSP de bastão na mão ordenando que apagássemos o lume.

Em inícios de abril, a junta de Arroios afixou cartazes que diziam que o jardim seria alvo de uma reabilitação. Quem lá vivia começou a preparar-se para ser expulso, outra vez. Dias depois apareceram montadas no adro da igreja duas tendas de campanha onde funcionárias da junta e da Santa Casa, auxiliadas por agentes da Polícia Municipal, se dedicaram a identificar pessoas a encaminhar para abrigos temporários.

Na igreja dos Anjos para além de uma minoria de portugueses (todos com mais de 50 anos) havia gente de todo mundo: Brasil, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Argélia, Tunísia, Palestina, Síria, Índia, Gâmbia, Senegal, Mali. Aqueles que não tivessem a sua situação regularizada, vulgo papéis, seriam identificados pela polícia, que lidaria com essa situação. Também se distribuíram panfletos com endereços de plataformas online de procura de trabalho, para que as pessoas sem casa encontrassem emprego “sem ter de sair de casa”.

Foram poucas as pessoas que saíram para abrigos, quase todas portuguesas ou falantes de português. Esse rapaz de 28 anos, cujo aniversário celebrámos um mês antes, foi um deles. Foi para o Beato. Voltei a vê-lo passados dois dias, nos degraus da igreja. Queixou-se de água fria dos chuveiros, camaratas cheias de gente e sem privacidade, seguranças privados que o trataram como se fosse um prisioneiro. Tanto quanto sei, passou a viver numa tenda perto do Alto de São João. Um outro homem, português de 67 anos, passou por dois abrigos temporários entre abril e setembro. Quando o tempo se acabou voltou a dormir na igreja, onde o encontrei e onde ficou até 4 de outubro.

Nesse dia, cerca de 60 pessoas foram retiradas do jardim da igreja dos Anjos e da rua Álvaro Coutinho, adjacente. O processo começou ao fim da tarde, discretamente. Os moradores receberam um aviso 48 horas antes e perderam muitas coisas que tinham guardado — alguns ao longo de ano e meio. A maioria foi realojada em hostéis, em condições precárias de privacidade e salubridade. Outros não aceitaram o alojamento. Estão hoje distribuídos pelas arcadas da avenida Almirante Reis.

No seu discurso nas comemorações do 5 de outubro, o presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas, afirmou: “ajudámos todas as pessoas que estavam à volta da Igreja dos Anjos a encontrar um teto”. Um mês de estadia num hostel sobrelotado dificilmente se pode considerar um teto. É um alívio. Há quem alcatroe estradas para mostrar obra feita, Moedas limpou a igreja dos Anjos para acalmar os fregueses de Arroios e não ferir a susceptibilidade dos turistas que passam nos autocarros descapotáveis.

Quando terminar o mês que a câmara terá adiantado aos donos dos hostéis, para onde vão as pessoas? Não se podendo regá-las com gasolina, nem mantê-las indefinidamente em camaratas, é urgente saber se voltarão para a rua e se as promessas de “soluções individuais” são verdadeiras. Com o histórico de mentiras deste executivo, há que estar atento.

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