Marcus Veiga é filho de pai cabo-verdiano e de mãe angolana. Nascido em Lisboa, encabeçou um projeto musical que mistura sonoridades africanas, sobretudo o funaná, com o som pesado do punk e da eletrónica. Para além do conteúdo político, Scúru Fitchádu assume uma estética subversiva que reconhece ter como referência, em parte, Amílcar Cabral.
“Sendo afrodescendente e tendo nascido em Portugal, estas experiências passavam um bocado ao lado. Foi na adolescência que fui atrás das raízes e era o meu avô que me falava de Cabral”, descreve à Voz do Operário. “O conceito estético do meu projeto é anti-colonial, pela mudança de pensamento, é essa a arte revolucionária que trago. É também uma homenagem aos meus antepassados através do funaná e do criolo”.
Para Marcus, o pai da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde era “uma figura imponente” pela forma de pensar e um “estratega” que conduziu a luta de um povo.
Segundo o músico, Cabral divide-se em duas partes: a prática revolucionária e a produção teórica. Para desenvolver o seu segundo projeto musical, dedicou-se a resgatar mais conteúdo africanista e chegou à conclusão de que Cabral tem aspetos “muito únicos”. Para além da estratégia e da revolução, do povo no poder, “a não resignação em relação a tudo o que eram pensamentos sociais vigentes”, que era, considera, uma visão muito eurocentrada. “Ainda que tivesse estudado fora de África, sempre percebeu que o povo africano tinha de se libertar dessa corrente colonial física e mental”, afirma.
Um dos objetivos de Scúru Fitchádu é promover a descolonização mental e recorda que a história pan-africanista “tem um paralelismo com o antifascismo a nível mundial”, sublinhando que há cada vez mais indícios de fascismo. Nesse sentido, considera que o legado de Cabral não está desatualizado. O antagonismo de classe num mundo em que o capitalismo empurra as pessoas para o individualismo é algo que destaca.
Com o Movimento para a Democracia (MpD), de direita, à frente do governo cabo-verdiano, através da figura de Ulisses Correia e Silva, a falta de comemorações oficiais do centenário do nascimento de Amílcar Cabral é evidente. Marcus Veiga atribui esta desvalorização do papel histórico do revolucionário ao que chama “síndrome de Estocolmo” do primeiro-ministro de Cabo Verde e considera que Cabral devia constar de forma estruturada nos manuais escolares. “Cabral não está morto, está na sua obra”.
O herói da juventude mais explotada
Também Flávio Almada, cabo-verdiano, a viver na Cova da Moura, na Amadora, concorda que a herança mais importante de Cabral é o pensamento e a prática. “Não ficou só a observar a realidade, agiu para modificar a realidade e com o fim mais importante: a justiça social”. Para além de intervir em vários bairros da periferia de Lisboa e participar nos movimentos sociais através do Vida Justa, lançou um projeto de rap com o seu nome artístico LBC Soldjah. Com essa experiência, sublinha que há cada vez mais jovens dos subúrbios a ler Cabral. “Os artistas querem saber cada vez mais de Cabral, a juventude anda a pegar em Cabral e a estudá-lo. Na comunidade cabo-verdiana, Cabral é, e ainda bem, uma figura importante. Sobretudo a juventude mais acantonizada, mais perseguida, mais explorada, mais violentada pelo sistema, quer saber de Cabral. Aqui, na Cova da Moura, por exemplo, junto àquele graffiti de Amílcar Cabral é onde a maior parte da juventude para. É ali que ficam parados a conversar e a trocar ideias. E é também lá que a polícia vai atacá-los. Dá para ver bem o que Cabral representa para nós”, descreve.
Sobre a atualidade do legado de Cabral dá o exemplo da luta concreta que se trava no campo da realidade material. “Hoje em dia é tudo rede social. Quando na realidade material, o dia a dia das pessoas, os obstáculos, as lutas, às vezes não são conhecidas, até por movimentos que vivem mais do Facebook e coisas do género. Não estou a dizer como forma de desvalorizar, é algo importante, mas a questão do terreno, é fundamental. Cabral dizia que quando começou a luta faziam uma disputa para ver quem mais falava na rádio. Hoje em dia, isso também acontece com as redes sociais. É determinante trabalhar com a realidade concreta e, como dizia Cabral, mobilizar as pessoas no contexto da sua vida material e em torno das suas aspirações”, explica.
De todas as formas, alerta para o perigo de se canonizar a figura de Cabral, despindo-o do seu pensamento. “Isso, às vezes, é a forma mais neoliberal de celebrar alguém sem ensinar as suas ideias”, pontua. Em Portugal, considera, não se ensina Cabral, em Cabo Verde é algo “terrível”. Nesse sentido, aponta o dedo ao governo cabo-verdiano por não haver uma homenagem oficial a Cabral. Considera o executivo “oportunista” e fala de uma corrente contrarrevolucionária representada no poder pelo MpD. Diz que Cabral também significa “distribuir a riqueza” e que atacar a sua figura é “atacar a classe trabalhadora cabo-verdiana”, aprofundando a sua “miséria e exploração”. “É um projeto ligado ao imperialismo e ao neocolonialismo”, garante.