Entrevista

Saúde

“O SNS é um dos pilares da nossa democracia”

É presidente do Sindicato dos Médicos do Norte e da Federação Nacional dos Médicos (FNAM). Médica no Instituto Português de Oncologia no Porto, Joana Bordalo e Sá tem sido um dos rostos da luta dos profissionais de saúde por melhores condições de trabalho e pela defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Com fortes críticas à ministra da Saúde, Ana Paula Martins (PSD), entende que a situação na área da saúde está pior do que em anos anteriores.

Hoje, uma mulher grávida corre mais risco do que em anos anteriores de não ter a assistência necessária?

Esse serviço degradou-se bastante, tem vindo a degradar-se, e este Ministério da Saúde, de Ana Paula Martins, nada fez para reverter a situação. Aliás, até a agravou. Temos uma falta enorme de médicos obstetras porque, o Ministério da Saúde nada fez para garantir mais médicos obstetras no Serviço Nacional de Saúde e em termos da ginecologia-obstetrícia. Há uma carência em todas as áreas mas, na ginecologia-obstetrícia, que é uma área tão sensível, há uma carência enorme. Isto faz com que haja encerramentos dos serviços de urgência de forma muito, muito frequente, em vários pontos do país, mas, sobretudo, em Lisboa e Vale do Tejo, onde a situação é pior e as grávidas estão em risco permanente. Têm de ser atendidas a muitos e muitos quilómetros da sua área de residência e isso é um risco para a grávida e para os seus bebés. Se lhes acontecer alguma fatalidade ou alguma situação nefasta, quer para si quer para os seus bebés, a responsabilidade é deste Ministério de Ana Paula Martins que, de facto, não reverteu a situação. E a situação está muito pior do que em anos anteriores, não há qualquer tipo de dúvida. Antes, tínhamos uma média de um nascimento por mês em situação de transporte, pontualmente poderia acontecer. Só no mês de julho há a informação de 13. Isto é um número…

Uma subida espetacular…

Sim, isto é gravíssimo.

Quais são os problemas mais graves que identifica atualmente no SNS?

Tem a ver, sobretudo, com a falta de recursos humanos. E são nas várias profissões. Nos médicos é particularmente grave porque, há estes encerramentos de serviços de urgência por falta de médicos. Mas não é só uma questão da urgência. Faltam também médicos de família nos cuidados de saúde primários. Nós continuamos com 1,6 milhões de utentes sem médico de família. E, portanto, também não está garantida nenhuma medida que atraia mais médicos para o SNS. 

Por outro lado, também devido à falta de médicos, temos cirurgias e consultas adiadas. Ou melhor, atrasadas. E, portanto, os doentes ficam um bocadinho aqui a descoberto, não é? Isto também é uma situação para que a FNAM tem vindo a alertar o Ministério da Saúde pelo menos nos últimos dois anos e meio e temos vindo a apresentar várias soluções, acima de tudo, para trazermos mais médicos para o SNS. Porque não há falta de médicos em Portugal. Nós temos 60 mil médicos, mais ou menos, inscritos na Ordem dos Médicos, mas só metade, 31 mil, é que estão no SNS. Sendo que destes 31 mil, 10 mil são médicos internos e só temos 21 mil especialistas nas várias áreas, apenas, a garantir os cuidados no SNS, de norte a sul do país e nas ilhas. Isto é claramente insuficiente.

PS e PSD prometem sempre nas campanhas eleitorais resolver os problemas na saúde e acusam-se mutuamente de serem os responsáveis pelo que se passa. O SNS vive em crise permanente. O que é preciso fazer?

Para o problema da falta de médicos em específico o que é necessário é que haja melhores condições de trabalho, que sejam dignas para os médicos quererem ficar e escolherem o SNS como o seu local de trabalho e fazerem ali a sua carreira. E também melhores salários, salários justos. Os médicos foram das classes profissionais que mais poder de compra perderam na última década e não foi reposto de forma alguma. Pelo que nós, como Federação Nacional dos Médicos, reivindicamos que o salário seja justo. Porque continuamos a ser um dos países que está na cauda da Europa no sentido negativo, em que temos os salários mais baixos. Por isso, o que é que acontece? Saímos do SNS. Os médicos saem para o estrangeiro, para vários países europeus, saem também para o setor privado. Estas duas condições são fundamentais, o direito a termos condições de trabalho que sejam dignas e salários que sejam justos para podermos estar a trabalhar no SNS. Se isto fosse garantido, seguramente teríamos mais médicos no Serviço Nacional de Saúde. É esta a solução. E é a única solução capaz de garantir cuidados de saúde médicos justos e corretos à população.

Houve vários responsáveis políticos que deram a entender que as reivindicações dos médicos são excessivas. É mesmo assim?

Tanto não é que o resultado está à vista. E a falta de médicos tem provocado o caos que existe, não é? Voltando ao mesmo, seja no serviço de urgência, sobretudo a nível de obstetrícia, a nível da pediatria, a nível da falta de médicos de família, também há poucos médicos de saúde pública, que também são médicos muito necessários no SNS. E nós sabemos qual é a solução para ter mais médicos, mas… excessivas são as inações ou as inações nefastas, nomeadamente que este Ministério de Ana Paula Martins tem tido relação em relação aos médicos.

Os médicos realizaram no fim de julho uma greve com 75% de adesão no SNS, sente que os médicos estão unidos em torno destas reivindicações?

Sim, os médicos estão extremamente revoltados e também cansados desta falta de vontade política do Ministério da Saúde em resolver a sua situação. Mas mais importante do que a percentagem da adesão à greve, nós sentimos que foi forte, com manifestações no Porto, em Coimbra, em Lisboa, bastante participadas e também com médicos de todas as idades, mas com muitos médicos jovens. Infelizmente é uma forma de luta que nós não gostamos de ver ou até de a fazer, mas voltamos ao mesmo: o responsável é unicamente o Ministério da Saúde, neste caso de Ana Paula Martins que tem sido sempre muito intransigente e inflexível para com os médicos, para os ouvir, ouvir as suas soluções e adotar algumas delas.

Esta luta mostra também a importância do papel dos sindicatos?

De certa forma, sim, porque a Federação Nacional dos Médicos é uma federação de três sindicatos: Sindicatos Médicos do Norte, Sindicato Médicos da Zona Centro e o Sindicato dos Médicos da Zona Sul. E nós somos os representantes dos médicos. O que nós aqui defendemos acima de tudo são condições de trabalho melhores, que sejam justas e dignas para os médicos e defendemos também o Serviço Nacional de Saúde e queremos ter médicos no Serviço Nacional de Saúde, porque também acreditamos num Serviço Nacional de Saúde que seja público, que seja universal, que seja de qualidade e acessível a toda a população. Porque é um dos pilares também da nossa sociedade, da nossa democracia. Isto é que está garantido.

Passam 50 anos da revolução de Abril e o SNS acaba por ser uma conquista dentro desse contexto histórico. 

O Serviço Nacional de Saúde foi uma das conquistas desta nossa democracia que celebra este ano os seus 50 anos e foi uma forma de garantir no seu espírito universal, acessível, público e de qualidade para toda a população. Poder garantir esses cuidados de saúde porque dantes, em tempos de ditadura, isto não estava garantido. E isso fez com que se atirasse Portugal, por exemplo, para os melhores rankings em termos de resultados em saúde, como por exemplo, na redução da mortalidade infantil, quando éramos um dos países do mundo com taxas mais baixas de mortalidade materno-infantil. Foi graças ao SNS. Não foi graças a mais nada. E, portanto, é um projeto que é um pilar básico da nossa democracia, tal como a educação. E o que entendemos é que, pelo menos do ponto de vista da Federação Nacional dos Médicos é que continuar a defender o SNS, assim como vamos continuar a defender melhores condições de trabalho para os médicos.

Em comparação com outros países, Portugal ainda tem um modelo público de saúde que pretende responder de forma democrática aos problemas dos cidadãos. Corremos o perigo que deixe de ser assim?

Esse perigo, efetivamente, existe e é sempre decisão, obviamente, de cada governo, como quer fazer. De qualquer forma, seja qual for o modelo adotado, os modelos só fazem se tivermos, nas várias instituições, nas várias unidades de saúde, equipas completas, motivadas a trabalhar em pleno para conseguirem garantir a melhor resposta aos doentes e aos utentes.

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