A nacionalização da banca foi um dos momentos mais importantes na revolução que começara em abril de 1974. Sobre a importância desta decisão política, Ricardo Noronha considera que, no contexto da época, significou “um antes e um depois”. Ou seja, até esse momento, do ponto de vista financeiro, afirma, “o governo provisório estava a responder a problemas na estrutura da economia portuguesa e a financiar os problemas de tesouraria das empresas, injetando dinheiro no sistema bancário”. Nesse sentido, “proporcionava às administrações da banca privada crédito, redesconto, ou seja, um crédito a uma taxa de juro mais baixa na esperança de que essas administrações, os circuitos da banca privada depois canalizassem esse dinheiro para as empresas”.
Contudo, os vários atos de sabotagem económica detectados pelos sindicatos do setor conduziram o governo liderado pelo primeiro-ministro Vasco Gonçalves à nacionalização da banca. A fuga de capitais incluiu, entre outros métodos, a transferência de fundos dos emigrantes portugueses para contas em Londres e em Paris e não para Portugal e a prática de subfaturação e de sobrefaturação das exportações. O investigador do Instituto de História Contemporânea explica que houve outros atos ilícitos como o financiamento de partidos de direita e extrema-direita. Dirigentes do Partido Liberal, do Partido do Progresso, do PPD e do CDS receberam o financiamento de vários bancos como foi detetado e objeto de relatórios junto do Banco de Portugal e do Movimento das Forças Armadas.
“Todos esses dados são denunciados, uns antes da nacionalização e outros depois, e só serão divulgados plenamente depois da nacionalização. O Mário Monteiro foi ministro da coordenação económica do quarto governo provisório, que é o governo encarregue da maior parte das nacionalizações, e tem uma expressão na conferência de imprensa que é: ‘só depois da nacionalização da banca é que foi possível destapar os segredos do capitalismo, do grande capitalismo’”.
É quando se dá o golpe derrotado contra a revolução a 11 de março de 1975 que Vasco Gonçalves anuncia a nacionalização da banca. “O governo chama a si as alavancas de controlo do poder económico. A banca é o grande baluarte do sistema capitalista e, quando é nacionalizada, o Estado passa a ter uma série de instrumentos para intervir direta e indiretamente na economia. E tem um controlo direto, no fundo, sobre os recursos financeiros, nomeadamente aqueles que resultam da emissão monetária. Portanto, do Banco de Portugal, em vez de estar simplesmente a proporcionar ou a terceiros a possibilidade de financiar os projetos ou as necessidades de financiamento desta ou daquela empresa, passa a ter um instrumento para o fazer diretamente”.
A banca é o grande baluarte do sistema capitalista e, quando é nacionalizada, o Estado passa a ter uma série de instrumentos para intervir direta e indiretamente na economia. E tem um controlo direto, no fundo, sobre os recursos financeiros, nomeadamente aqueles que resultam da emissão monetária.
Em Portugal, refere Ricardo Noronha, a nacionalização da banca torna-se também o ponto de partida para uma transição socialista e recorda que essa decisão teve o apoio da esquerda militar, do COPCON e também de muitos militares muitas vezes designados como moderados. “Todos eles convergem na ideia de uma via portuguesa para o socialismo”, sublinha. Em paralelo, o investigador lembra que também há nacionalizações dentro do sistema capitalista e dá o exemplo da Coreia do Sul, “muitas vezes exaltada pelos neoliberais como grande exemplo mas onde toda a banca foi nacionalizada potenciando o take off industrial tão bem sucedido no país depois de o Estado impor uma série de condições para o financiamento da indústria”.
Depois da nacionalização da banca portuguesa, parte-se para a nacionalização dos seguros e de outros setores estratégicos como os transportes, a eletricidade, a refinação de petróleo, o aço, o cimento, o papel e a cerveja. Nesse contexto, boa parte dos órgãos de comunicação social, propriedade dos grupos financeiros nacionalizados, passam a ser do Estado. “Os jornalistas tinham já levado a cabo processos de luta bastante intensos numa série de jornais, sobretudo os de Lisboa, mas não só. E já se tinham imposto às administrações dos jornais, muitas das quais tinham basicamente representantes da banca. Muitos administradores envolvidos com a ditadura e com o aparelho repressivo foram removidos. Os jornalistas já tinham conquistado muito espaço antes da nacionalização da banca, desse ponto de vista, a nacionalização veio consagrar uma situação já mais ou menos de facto existente.
Reforma agrária, uma conquista dos trabalhadores
O processo da reforma agrária não se dá apenas contra a sabotagem dos grandes proprietários mas também devido à luta prévia dos trabalhadores rurais através dos seus sindicatos. A conquista de importantes direitos como os contratos coletivos de trabalho logo no verão de 1974 impunha o pleno emprego durante todo o ano em contraposição à sazonalidade e melhores salários.
“Era uma das grandes reivindicações da classe dos trabalhadores rurais porque havia uma grande sazonalidade: na época das ceifas havia muito emprego para todos e depois no inverno passava-se fome. E as reivindicações dos sindicatos com massivo apoio da classe foi precisamente emprego anual e a dada altura os sindicatos conseguiram impor o mecanismo de colocação coerciva de trabalhadores nas herdades”, explica.
As primeiras ocupações de terras foram feitas ao abrigo do decreto-lei 660/74, que é precisamente o decreto que permite ao Estado intervir numa empresa caso haja provas de que ela está a ser mal gerida.
“Os proprietários resistem a esse processo e é isso que espoleta as ocupações de terras, embora também haja essa dimensão da sabotagem económica. As primeiras ocupações de terras foram feitas ao abrigo do decreto-lei 660/74, que é precisamente o decreto que permite ao Estado intervir numa empresa caso haja provas de que ela está a ser mal gerida. Essas provas podiam ser recolhidas pelos sindicatos ou pelas comissões de trabalhadores e isso é que vai espoletar, depois, durante o inverno e primavera de 75, uma vaga de conflitos laborais, que já não têm tanto a ver com as reivindicações salariais porque já essas tinham sido bem-sucedidas nos primeiros meses da revolução, mas tem precisamente a ver com o controlo sobre a gestão, da fiscalização de dados da gestão, do acesso à contabilidade. Ainda antes de haver legislação sobre a reforma agrária propriamente dita, já os trabalhadores estavam a ocupar herdades”, acrescenta Ricardo Noronha.
Admite que ainda se sabe pouco sobre o impacto da reforma agrária e que essa parte da história ainda está por analisar por parte dos investigadores. Ainda assim, sublinha, “a produção de cereais aumentou substancialmente em Portugal em 75 e em 76”, o que, alerta, pode ter a ver também com variáveis que não são controladas pelos seres humanos como o clima. “Mas nós sabemos que não houve um decréscimo da produção. Portanto, as sementeiras e as colheitas foram feitas”.
Não houve golpe de esquerda a 25 de Novembro
Depois de muitos anos de um quase silêncio sobre a data, a direita agita o 25 de Novembro como se se tratasse da data que instaurou definitivamente o regime democrático no país. A tese é a de que a esquerda queria instaurar uma ditadura e que a direita foi obrigada a intervir. Ricardo Noronha nega esta versão. Diz, aliás, que quem o faz “tem pouca densidade histórica”.
“Muita coisa aconteceu nesse dia. E sobrepuseram-se várias coisas e várias movimentações. É bastante claro, hoje, que um setor grande da direita militar aspirava a aproveitar um confronto com a esquerda para suprimir o que restava do MFA, ilegalizar tudo o que estivesse à esquerda do PS e depois logo se veria se o PS também não iria na vaga. No fundo, construir um regime, provavelmente formalmente democrático, mas muito recentrado à direita. E que provavelmente seria depois o ponto de partida para reverter grande parte do adquirido da revolução. E também é claro que setores mais à esquerda queriam travar a evolução do MFA para a direita, que já estava em curso desde setembro de 1975. Queriam substituir membros do Conselho da Revolução, no fundo, também reestruturar o Conselho da Revolução à esquerda. E havia a perceção de que qualquer confronto que houvesse poderia dar lugar a um golpe de direita, portanto, que era preciso no fundo estar preparado para resistir a isso. E estar preparado implicava a contagem de espingardas, mobilização e um plano operacional para responder a esse golpe de direita”.
É bastante claro, hoje, que um setor grande da direita militar aspirava a aproveitar um confronto com a esquerda para suprimir o que restava do MFA, ilegalizar tudo o que estivesse à esquerda do PS
Para Ricardo Noronha, no 25 de Novembro, “só houve um setor que tinha um plano operacional e que o executou, que foi o Grupo do 9, utilizando os setores da direita militar, mas integrando-os sempre e colocando-os sempre sob a sua alçada e a sua hierarquia, sob o comando ou pelo menos a autorização do Presidente da República, Costa Gomes”. Nesse sentido, considera que Costa Gomes tentou até ao final evitar acionar esse plano “porque tinha receio de que no processo a direita militar acabasse por se tornar demasiado poderosa e pudesse precisamente reverter o processo revolucionário”.
Questionado sobre se houve ou não uma tentativa de golpe por parte da esquerda, Ricardo Noronha responde dizendo que se houvesse, os paraquedistas teriam capacidade de ir mais além. E não foram. “Quando olhamos para os comunicados, as reivindicações são claras: querem pedir a dissolução da unidade, querem substituir os membros da Força Aérea, os Comandantes da Força Aérea, do Conselho da Revolução e querem a demissão do chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Para o investigador, são reivindicações que estão dentro do contexto do processo revolucionário. “Era assim que se faziam as lutas, foi assim que Grupo dos 9 se mobilizou para conquistar a maioria dentro do MFA: ou desobedecendo a ordens, fazendo comunicados, fazendo abaixo-assinados e tudo mais. Portanto, foi uma movimentação político-militar que está mais ou menos em linha com aquilo que era o repertório da ação política de setores militares dentro do contexto revolucionário. Portanto, à margem da hierarquia, em desobediência, mas não em confronto, tentando sempre estabelecer um canal de negociação, reivindicando… e quem reivindica, é porque reconhece que há do outro lado, no fundo, um interlocutor legítimo”.
Em relação às declarações do atual presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, sobre o 25 de Novembro ter derrotado o socialismo, Ricardo Noronha diz não chegar a ser revisionismo. “É ignorância”. Acusa o autarca do PSD de não saber o que diziam os documentos do PPD em 1974. “Para Carlos Moedas deve ser um mistério que o PPD tenha votado a favor da Constituição, que dizia que Portugal estava abrindo caminho para a construção de uma sociedade socialista, sem classes, por aí fora”, recorda. “Até Marcelo Rebelo de Sousa publicou editoriais no Expresso em apoio a uma via original e democrática para o socialismo”.
“Para Carlos Moedas deve ser um mistério que o PPD tenha votado a favor da Constituição, que dizia que Portugal estava abrindo caminho para a construção de uma sociedade socialista, sem classes, por aí fora”
De acordo com Ricardo Noronha, “durante muito tempo, para direita, o que interessava era a querela constitucional, ou seja, se era possível com a Constituição que existia governar sem ser em socialismo”. Nesse sentido, explica que o 25 de Novembro foi sempre algo marginal no discurso nos 20 ou 30 anos a seguir ao 25 de Abril. “Eu acho que foi à medida que a data do 25 de Abril se foi consolidando no imaginário coletivo português, como data absolutamente consensual e inequivocamente colocada à esquerda, a direita sentiu a necessidade de falar do 25 de Novembro. A direita nunca ligou muito o 25 de Abril e, portanto, o seu conteúdo substantivo foi sendo preenchido por um imaginário de justiça social, de igualdade, de liberdade, mas com este tipo de valores que hoje em dia a esquerda é que reivindica. O 25 de Abril não é associado a uma economia de mercado mais competitiva ou à defesa da propriedade privada, não é?”
Ao contrário da narrativa da direita, o historiador sublinha que a população não saiu à rua para celebrar o golpe de direita. Quem saiu à rua, fê-lo para defender o processo revolucionário.
Recentemente, Pacheco Pereira lançou o desafio de convocar uma grande manifestação de celebração do 25 de Novembro com a suspeita de que não apareceria muita gente. Ricardo Noronha considera que seria um desafio “interessante”, afirma que “gostava de ver a direita correr esse risco” e entende que a direita não o faz porque aquilo que se viu no 25 de Abril deste ano é uma manifestação que seria “impensável em qualquer outro dia” e em “qualquer outra data promovida pela direita”.