Entrevista

Palestina

Fayez Badawi: “A União Europeia é cúmplice do genocídio”

Histórico da Frente Popular de Libertação da Palestina, cresceu com George Habash, Leila Khaled e Ghassan Kanafani. O antigo porta-voz da organização, durante décadas, na Europa, aceitou conversar com A Voz do Operário sobre a sua trajetória política, a resistência e o assassinato de mais de 35 mil palestinianos em Gaza.

Onde nasceu?

No Líbano, em 1955. Nasci numa barraca. As barracas eram feitas de lata. Quando chovia, a água caía em cima de mim. Não havia luz no campo de refugiados de Tel al-Zaatar. Andei no liceu com um candeeiro a petróleo. Nesse campo, dormia no chão. Só soube o que era uma cama quando tinha 18 anos. Sou o mais novo de 10 filhos. Naquela altura, éramos cinco. Um dos problemas era que os palestinianos no Líbano não tinham direito a trabalhar, mas nós trabalhávamos na mesma. Os meus irmãos trabalhavam nos arredores do campo e o maior complexo industrial libanês ficava ao lado dos campos. Os meus irmãos trabalhavam do nascer ao pôr do sol, sem segurança social e com um salário reduzido. 

E de onde vem a sua família?

A minha mãe era de uma aldeia nos arredores de Heifa, no norte da Palestina, que é a cidade da minha camarada Leila Khaled. O meu pai da Galileia, de uma cidade chamada Shefahab. A aldeia da minha mãe foi destruída em 1948 e hoje em dia é uma zona turística importante. Chama-se Kiryat Yam. Aquando da fundação, Israel destruiu 531 povoações.

Os seus pais foram forçados a partir?

Sim, durante a Nakba [catástofre, em árabe]. Eram camponeses. Nós somos beduínos. Um terço da população palestiniana é beduína. A maioria trabalhava no campo. Naquela época não havia muitos operários porque não havia um desenvolvimento da classe trabalhadora como se conheceu na Europa. A minha família participava na resistência mas de forma clandestina. A opressão britânica naqueles tempos era terrível. Havia assassinatos continuamente. O meu irmão mais velho era membro do Exército de Libertação da Palestina. A minha mãe participou na primeira revolução palestiniana em 1929 e, com o meu pai, participaram na greve geral mais importante na Palestina, que foi em 14 de abril de 1936 e durou seis meses. E como consequência, veio a grande revolução palestiniana que durou de 1936 a 1939. E por casualidade, o grande líder dessa revolução não era palestiniano. Era sírio. Vinha de Alepo e lutava contra o colonialismo francês. Chamava-se Izzedin al-Qassam. É por isso que o movimento Hamas tem brigadas armadas com o nome desse grande líder amado pelo povo palestiniano.

E como se conheceram os seus pais?

O meu avô era latifundiário. A minha mãe nasceu em 1901, como o meu pai. E a minha mãe apaixonou-se pelo meu pai e decidiu casar-se com ele. O meu avô rejeitou. Como é que a filha de um rico se vai casar com um pobre? E casou-se na mesma. A mulher tinha capacidade de decusão já naquela época. Ela tinha o apoio dos vizinhos e casou-se contra a vontade do meu avô. 

Depois de fugirem da Palestina, alguma vez viveram fora do acampamento?

Não, viveram ali até à morte do meu pai. O meu pai morreu aos 71 anos. Precisamente em 1972. E aconteceu algo curioso. Depois da morte, chegaram os meus camaradas da Frente Popular para me dar os pêsames. Eu tinha apenas 17 anos. Descobri que estavam ali por ele e não por mim. O meu pai era responsável pelas ações da guerrilha clandestina do sul do Líbano à Galileia. Era membro do partido e eu não sabia. Isso deixou-me ainda mais triste. Só soube depois da sua morte. Isso afetou-me. Era meu camarada e eu não sabia [emociona-se].

Quando é que se comprometeu a lutar pelo seu povo?

Lembro-me exatamente da data. Foi a 15 de maio de 1967. Nesse dia, estava a ir para a escola. Estava no sexto ano da escola primária. E vi um rapaz cair no chão. Estava a ser agredido pela polícia. E esse rapaz estava a distribuir propaganda a apelar a uma greve geral para o aniversário da Nakba, a catástrofe, e os panfletos caíram e a polícia secreta libanesa levou-o preso. Isso foi no campo de refugiados de Tel al-Zaatar. Comecei a distribuir essa propaganda. E foi assim que me envolvi na luta do meu povo. Depois de distribuir estes panfletos, conheci os camaradas do Movimento Nacionalista Árabe e comecei a fazê-lo regularmente. A Frente Popular nasceu a 11 de dezembro do mesmo ano. Quando nasceu, eu já era membro da organização. Era um miúdo de 12 anos que trabalhava para a Frente. O meu primeiro trabalho foi como estafeta. Era um elemento de ligação. Quero dizer com isto que transportava propaganda do centro de Beirute para o acampamento, ou transportava armas ligeiras como granadas de mão e pistolas. E foi assim que comecei na Frente Popular.

E quando passou a incorporar a resistência armada?

A minha incorporação na guerrilha foi em 1968. Tinha 13 anos. Tive a sorte de ser treinado por gente muito preparada. Foi assim que se deu o meu processo como guerrilheiro dentro da Frente Popular. Eu cresci com os fundadores. Era como um filho para George Habash [secretário-geral da FPLP], era como um irmão para a Leila Khaled, era amigo de Ghassan Kanafani. Eu cresci naquele ambiente de camaradagem e amizade. Também eram duros comigo. Tampouco eram meigos [ri-se]. Por isso, até aos dias de hoje continuo a dar tudo pela nossa causa. 

Estava no Líbano, em 1982, quando se deu a invasão isralita.

Antes, o partido chamou-me para que me incorporasse na guerrilha. Eu vinha da ala militar. Isto foi em janeiro desse ano. Estava em Beirute. Esperávamos que Israel atacasse mas não atacava. Ia viajar no dia 8 de junho mas Israel atacou no dia 6. Juntei-me imediatamente à luta armada. Eu pertencia ao Quartel-General da resistência mas ao mesmo tempo participava no eixo da defesa de Beirute desde o aeroporto até um acampamento palestiniano que se chama Mar Elias, até à fábrica de Coca-Cola e até à Universidade Árabe de Beirute. Tínhamos uma coluna de choca contra os israelitas. Estive na resistência até ao fim, quando houve um acordo para a saída da resistência palestiniana para o Iémen, Síria ou Argélia. Eu pedi ao partido para ficar. Eu sou do Líbano e não vou sair. Os meus pais estão no Líbano e prefiro continuar na resistência clandestina armada. Foi assim até à matança de Sabra e Chatila quando já perdi os nervos. Tive de sair de forma clandestina do Líbano e tive de passar com documentação falsa oito postos de controlo militares israelitas e fascistas libaneses, refiro-me ao Partido Falangista Libanês. Cheguei ao Vale do Beqaa rumo à Síria, tinha os nervos destruídos. Ainda que sejas muito forte, és um ser humano. Quando enterras gente da matança de Sabra e Chatila, como no meu caso em que enterrei 26 pessoas da minha família com as minhas próprias mãos, isso afeta-te muito. Cheguei à Síria e disse que não aguentava mais. Estive quase dois anos sem qualquer atividade política. Foi então que parti para a Europa. 

Quando começou a atividade na Europa?

Eu cheguei à Europa de forma clandestina. Assim estive até 2002. Assumi publicamente a minha militância na Europa precisamente quando metem a FPLP na lista de organizações terroristas. Com que direito a Europa nos metia em tal lista? Com que direito? Terrorista é o Estado de Israel, o sionismo, o imperialismo. Não nós. Rejeitámos que nos chamassem terroristas. Um exemplo muito claro foi Nelson Mandela que também era considerado terrorista e depois deram-lhe o Nobel da Paz. A nós não nos dá medo porque estamos num momento em que tanto nos dá a vida como a morte. Mas prefiro morrer com dignidade, morrer de pé, não viver ajoelhado. 

Foi o porta-voz da FPLP na Europa durante décadas.

Sim, mas hoje dou conferências já não como porta-voz, apenas como membro do partido. Como membro do povo palestiniano. Porque a resistência palestiniana hoje é quem manda. Se não fosse pela força do povo, não duravamos nem uma semana. A resistência em Gaza dura há mais de sete meses. Por que é forte a resistência? Porque há um povo detrás. A resistência são os filhos do povo. Não é uma resistência desconectada de quem ali vive. 

Mas houve muitas críticas e condenações à atuação da resistência palestiniana no 7 de outubro.

Em primeiro lugar, quero deixar algo muito claro. Todos os que criticaram a resistência palestiniana, ou não conhecem a história do povo palestiniano ou é cúmplice dos crimes de Israel. Por acaso, o mundo não sabia que há 7 milhões de refugiados? Por acaso, o mundo não sabia que Gaza é o maior campo de concentração da história? Por acaso, o mundo não sabia que a Cisjordânia se transformou num gueto? Por acaso, não sabia que Israel entra quando quer na Cisjordânia, assassina e destrói casas e ataca famílias? Quem nos ataca não conhece a realidade e nós, como palestinianos, estamos orgulhosos do 7 de outubro porque foi uma resposta aos crimes de guerra contra nós levados a cabo pelo imperialismo encabeçado pelos Estados Unidos e a cumplicidade ou a atuação ou a participação da União Europeia. A União Europeia é cúmplice dos assassinatos de Israel. Especialmente, a Alemanha e a França. E também Inglaterra. O 7 de outubro foi uma ação bem preparada, não pelo Hamas como todos dizem agora mas por todos os braços armados das organizações palestinianas, incluindo o da Fatah.

Ainda assim, é criticada a morte de civis israelitas.

Quem diz isso, não é que não conheça a história. É cúmplice. Eu faço distinção entre meios de comunicação e jornalistas. Os jornalistas que mostraram o que realmente aconteceu foram assassinados. Israel assassinou 160 jornalistas para que não saiam notícias de Gaza. A resistência palestiniana enganou a CIA e a Mossad. Atacou os arredores de Gaza na operação Dilúvio Al-Aqsa. A resistência atacou através de 17 saídas de Gaza através de parapentes fabricados por nós e atacou também com motos e camionetas. O primeiro ponto atacado foi o quartel-general do exército israelita, também o quartel-general da Mossad. E pela primeira vez na história, a resistência supera a inteligência do Estado de Israel. Levaram documentação. Assim como levaram presos para libertar os nossos das prisões israelitas. Durante 48 horas, eram apenas 1200 guerrilheiros. Muitos iam camuflados com uniformes do exército israelita. Foram eles que bombardearam o festival. Para mim e para o meu povo, todo aquele que está no Estado de Israel é um colono. Os colonos israelitas andam armados e estão contra a população palestiniana. Nesse sentido, consideramo-los militares. Portanto, temos de defender a nossa causa.

Contudo, há israelitas que estão contra a forma como o Estado de Israel atua.

Sim, mas eu convido esses israelitas que estão contra a forma como o Estado israelita atua que voltem às suas casas. Que voltem à Polónia, que voltem à Ucrânia, que voltem a Espanha, que voltem a França. A Palestina está ocupada por um movimento que se chama movimento sionista. Isso é o melhor favor que nos fariam. Como se pode ser israelita e ser pela paz? Apoiar a Palestina é defender uma Palestina do rio até ao mar. Há muitos que nos acusam de ser anti-semitas. Mas se semitas somos precisamente nós os palestinianos. Alguém da Polónia ou da Argentina não é semita. A sociedade israelita é fabricada, é artificial. Para nós, como o cristianismo, o judaísmo é uma religião e não uma entidade popular. Não é um povo. 

Também vos acusam de manter as mulheres sem direitos em Gaza.

Por que não dizem isso da Arábia Saudita e por que temos nós na Palestina dirigentes guerrilheiras palestinianas? Temos uma brigada de mulheres. Para além disso, somos um povo mais civilizado do que muitos na Europa. A violência de género como há na Europa nós não a conhecemos. 

Acusaram-vos de violar mulheres no âmbito da operação do 7 de Outubro.

Por que não deixam falar publicamente as mulheres que estavam sequestradas e que foram depois libertadas? Essas mulheres tinham proteção de mulheres da resistência. Eu sou laico e sou marxista mas na religião muçulmana é proibido tratar as mulheres de forma violenta. Para além disso, na religião muçulmana, um preso tem de ser tratado com dignidade. Não como Israel nos trata nas prisões. A CNN dizia que o Hamas tinha decapitado 40 bebés israelitas. É mentira. Até o Le Monde pediu desculpa porque transmitiu uma notícia falsa. 

Como olha para este genocídio em curso e para o papel da comunidade internacional?

É indignante. O direito internacional serve para defender os interesses do imperialismo. O exemplo mais claro é que há dois pesos e duas medidas em relação ao que se passa na Ucrânia. O que acontece ali não chega nem ao 0,1% do que acontece em Gaza. Ainda assim, a União Europeia acusa Putin de imperialista, de assassino, de que há que fazer um embargo. E por que não fazem o mesmo com Netanyahu? Simplesmente porque o Estado de Israel é um Estado europeu. Foi fundado por colonos europeus. Israel participou no festival da Eurovisão, por que não participou também a Rússia? Isto é a vergonha do chamado mundo livre. Assassinaram 17 mil crianças, assassinaram 10 mil mulheres, a maioria mães, há mais de 18 mil meninas e meninos órfãos. A comunidade internacional é cúmplice do que está a acontecer. 

Como olha para os tempos que vêm?

O Estado de Israel já não tem sentido. Vai cair. Quanto tempo vai durar? Mais 10 ou 20 anos? França tinha a Argélia colonizada durante 132 anos e no fim os franceses tiveram de abandonar a Argélia. Isso é o que vai acontecer na Palestina. Não vão conseguir fazer connosco o que fizeram na Austrália. Eliminaram os indígenas, os aborígenes, e fizeram a Austrália. A Palestina vai ser do povo palestiniano e de todos os que queiram viver em paz connosco. Quem decide o futuro do meu povo é o meu povo. Não vamos tolerar lições de ninguém.

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