15 de abril de 1984. Uma Assembleia Geral eleitoral bloqueada. Um governo de “bloco central”: apesar das ingerências, 40 anos depois, a Mútua dos Pescadores continua viva, a servir e a defender o setor piscatório nacional.
Eram mais de mil e vinham em autocarros das diversas comunidades piscatórias do país. Eram mais de mil os que queriam votar na Assembleia Geral (AG) eleitoral da sua Mútua. Foram mais de mil os que regressaram de autocarro às diversas comunidades, impedidos de votar pela polícia de intervenção, cumprindo ordens do Governo de então.
A 15 de abril de 1984, retomava-se na sede da Voz do Operário, em Lisboa, a AG eleitoral iniciada a 25 de março, na sede da Mútua dos Pescadores, na Avenida Infante Santo, na mesma cidade.
Para incredulidade de muitos dos presentes, quebra-se o clima de consenso e apresentam-se duas listas a sufrágio, algo inédito no período democrático. Por proposta da lista B, tenta interferir no processo eleitoral, à moda do Estado Novo, um representante do Ministério da Marinha – o clima tumultuoso instala-se.
No mesmo dia em que se aprova por unanimidade o Relatório de Actividades e as Contas do ano de 1983, apresentam-se duas listas, encabeçadas pela mesma pessoa, para tornar o acto ainda mais inusitado, insólito e caricato. De seu nome Manuel Vilaça (Póvoa de Varzim), ao que parece muito pressionado pelos armadores da pesca artesanal na tentativa de desviar a Mútua dos Pescadores do caminho traçado até aí. Vilaça decide-se pela lista B que viria a perder as eleições. A lista A saíra vencedora porque recebera a confiança dos associados, também através de votação expressiva pela via do voto por representação.
A lista perdedora não aceita o resultado eleitoral. Instala-se o caos. Sequestram-se urnas de voto. Assiste-se a episódios de violência física. Solicita-se intervenção policial para concluir o ato eleitoral e reestabelecer a ordem e a segurança na AG. Declara-se sem efeito o ato eleitoral por não haver condições objectivas para um real apuramento final da votação.
Esta situação inusitada, ao que tudo indica previamente planeada, abre portas e serve de pretexto a uma intervenção governamental que decide, por resolução ministerial, de 10 de abril de 1984, nomear uma Comissão Administrativa para marcar e fazer o devido acompanhamento do novo acto eleitoral. Tudo isto é colocado em marcha sem que ninguém recebesse nenhuma comunicação prévia, nem o presidente da AG em exercício, João Carlos Raposo de Almeida (Sines), nem tão pouco o Instituto de Seguros de Portugal.
Neste processo de contornos específicos e com objectivos claros – evitar os incómodos causados por uma Mútua com opinião, que contestava o rumo do país e do sector, ao qual não se davam respostas, e com forte ligação ao movimento sindical de classe – foram também intervenientes directos, Carlos Melância, Ministro do Mar, e Ernani Lopes, Ministro das Finanças.
Os Órgãos Sociais da Mútua são suspensos. A Comissão Administrativa avança, a gestão corrente e os mais diversos atos administrativos da Mútua complicam-se. A ingerência do Governo na Mútua confirma-se, com recurso a procedimentos ilegais e arbitrários, num período em que se comemoravam 10 anos após a revolução de abril. As machadadas no caule do cravo que sustenta os valores e as conquistas de abril não são coisa nova, tem sido um longo e empenhado processo.
Na tentativa de retomar a AG eleitoral, e a normalidade na instituição, a mesma é convocada para 15 de abril de 1984, na sede da Voz do Operário. Os apelos à não participação dos associados vinham com amplificação nacional através dos canais públicos de rádio (RDP) e televisão (RTP). O “Caso da Mútua” abria telejornais.
Quarenta anos volvidos sobre essa manhã que marcou a vida de muitos, sendo um momento decisivo para a própria Mútua, importa relembrar que, no Portugal democrático, houve um governo que mandatou a polícia de intervenção bloquear os acessos à sede da Voz do Operário para que a democracia interna de uma organização de direito privado, associativa, não acontecesse.
José António Amador, membro da Direção à época e Presidente da mesma instituição em diversos mandatos, recorda “Chegámos por volta das 8 da manhã. Estávamos mais de mil associados prontos para votar, mas a polícia cercou todos os acessos à Voz do Operário. O Presidente da “Voz”, na altura, disse-nos para entrarmos porque aquela era uma instituição privada! Havia uma porta alternativa à porta principal, logo poderíamos entrar por aí e fazer a Assembleia Geral. Um homem empenhado em cumprir as tradições democráticas que caracterizavam aquela casa. Mas nós vimos que a coisa ia dar para o torto e o melhor era não avançar… fizemos, no largo da Graça, um plenário e aconselhámos o pessoal a ir para casa até nova convocatória. Se não o fizéssemos, poderíamos ter ali um dia de muita bastonada e de muito sangue. Não podíamos cometer essa irresponsabilidade. O pessoal regressou toda a casa, mas nós, os dirigentes, continuámos a ser perseguidos!”
Sobre o estranho episódio, Jerónimo Teixeira, Director-Geral da Mútua durante 34 anos, Presidente do Conselho de Administração entre 2017 e 2021 e actual Presidente da Mesa da Assembleia Geral, não tem dúvidas em afirmar “Provavelmente este caso, de intervenção violenta das forças policiais sobre uma estrutura privada de cariz associativo, a mando de um governo de “bloco central”, em que PS e PSD se entenderam para fazer o que fizeram à Mútua dos Pescadores, tem contornos singulares em tempos de democracia. Sobre isto, cada um que tire as suas próprias conclusões!…”
Este caricato processo só se finaliza após um último ato eleitoral, feito de forma descentralizada por diversas zonas da costa nacional e controlado pelos capitães dos portos em cada uma das comunidades, a 29 de julho de 1984. Em Lisboa, foi, mais uma vez, na Voz do Operário que funcionou uma das secções de voto.
As perturbações introduzidas pela Comissão Administrativa, e muito particularmente pelo membro nomeado pelo Governo, Rui Gomes da Silva, levaram a que a contagem e validação dos votos demorasse meses, onde a participação de Frederico Pereira, que viria a assumir diferentes tarefas nos Órgão Sociais da Mútua dos Pescadores, foi absolutamente decisiva para o desfecho final.
A lista A venceu as eleições com cerca de mais 700 votos do que a lista B. A 11 de dezembro de 1984, através da publicação de uma resolução do Conselho de Ministros, presidido por Mário Soares, de 29 de novembro, decreta-se a cessação de funções da Comissão Administrativa, reconhecendo os resultados eleitorais e a legitimidade dos Órgãos sociais eleitos.
No entanto, este reconhecimento não ficou isento de recomendações e sugestões à conduta e ao funcionamento de uma instituição que, apesar dos ventos adversos decorrentes da conjuntura económica e social que o país atravessara no início da década de oitenta, com intervenções do FMI, inflação em alta, subida das taxas de juro, limitações ao crédito, manteve uma trajectória de crescimento, consolidação de resultados, alargamento de balcões, valências e condições vantajosas para os seus associados, e crescente influência nas comunidades piscatórias em todo o país – talvez este exemplo, de que é possível gerir bem, de forma democrática, mantendo um serviço humanizado e de proximidade, também fosse uma das razões que levaram o Governo da altura a ingerir ilegalmente na Mútua dos Pescadores.
Quarenta anos depois deste episódio, e oitenta e dois anos após a sua criação, a Mútua dos Pescadores é a única Mútua, das quatro que foram criadas quase em simultâneo no sector da Pesca, a resistir ao tempo, às dinâmicas da história, aos diferentes ciclos políticos, continuando a reclamar um outro futuro para as pescas nacionais, um outro rumo para o país e um futuro mais promissor para o seu povo.