Sendo hoje evidente que genocídios e limpezas étnicas só são condenáveis e fazem manchetes se praticadas por inimigos do mundo “democrático e livre”, urge falar desta guerra com um desfecho ímpar na história recente, que só não foi mais macabro porque o povo arménio aprendeu a reconhecer um genocídio que está ao virar da esquina.
O Genocídio Arménio às mãos do Império Otomano (1914-1917) é marcado por deportações e massacres e culmina com as marchas da morte pelo deserto sírio. Ao todo, foram mortos mais de 1 milhão de arménios, atirados de penhascos, vítimas de doença ou trabalhos forçados, à sede e à fome. E os massacres prosseguem, não só no Império Otomano mas também em NK, uma região com 90% de população arménia rodeada por território azeri.
A sucessão de massacres interrompe-se com a incorporação do Cáucaso na URSS em 1923. Mas, ao serem desenhadas as fronteiras da Arménia e do Azerbaijão, NK é deixado sob o controlo do Azerbaijão.
Em 1988, reacendem-se as tensões étnicas que a URSS mantivera adormecidas. A aspiração da população de NK a uma unificação com a Arménia é mal recebida no Azerbaijão. Entre 1988 e 1990, três cidades azeris são palco de pogroms contra a minoria arménia. Azeris pilham e incendeiam casas, violam, mutilam e queimam pessoas vivas. Quase toda a população arménia abandona o Azerbaijão.
As autoridades locais convocam, em 1991, um referendo sobre a independência de NK. Apesar do boicote pela população azeri, 99.98% dos 82% de votantes escolhem a independência. O Azerbaijão não a reconhece.
A guerra aberta estala em 1992 e termina em 1994, com as forças arménias a controlar a maioria de NK e vários municípios azeris adjacentes. Acorda-se um cessar-fogo, mas não é assinado um acordo de paz – a independência de NK não é reconhecida, e o Azerbaijão não recupera os municípios perdidos. Torna-se um conflito congelado.
Abutres
Desde o colapso da URSS, as potências ocidentais cultivam laços económicos e militares com este território rico em petróleo, gás e outros recursos, banhado pelo Mar Cáspio e com uma posição geoestratégica única, ao fazer fronteira com a Rússia e o Irão. Entre 1994 e 2020, EUA, Inglaterra, França, Turquia, Ucrânia, Rússia e Israel vendem armas ao Azerbaijão.
A Arménia, com menos recursos e uma posição geoestratégica menos interessante, perde terreno face à progressiva modernização e aumento das capacidades militares das forças azeris. A Rússia é a sua principal fonte de armamento.
O princípio do fim
Em 2020, o Azerbaijão lança uma ofensiva militar para recuperar os municípios ocupados pelas forças arménias em 1993. Com os azeris, combatem mercenários vindos da guerra na Síria. O uso de drones israelitas inflige pesadas baixas do lado arménio, atingindo pontos de concentração de tropas antes de estas chegarem à frente de batalha. Num mês, o Azerbaijão captura vários municípios azeris nas mãos dos arménios e territórios no sul de NK.
A guerra é curta mas brutal. Ambas as partes cometem crimes de guerra. Contudo, como afirma o Instituto para o Estudo dos Direitos Humanos da Universidade de Columbia, “os danos colaterais dos azeris” não se comparam com “a política de atrocidades, como mutilações e decapitações, cometidas por forças azeris e seus proxies”.
Com os azeris a 15km da capital, Stepanakert, precipita-se um acordo de cessar-fogo mediado pela Rússia. As forças arménias acordam retirar-se dos municípios azeris que controlam. Forças de manutenção de paz russas monitorizarão a linha de contacto e o corredor de Lachin, única ligação terrestre entre NK e a Arménia.
Segue-se uma relativa acalmia até Dezembro de 2022, quando “activistas” azeris bloqueiam o corredor de Lachin, alegando protestar contra a actividade mineira em NK. A manobra, apoiada pelo governo, é vista como uma utilização de civis para impôr um bloqueio ao território. É cortado o fornecimento de gás a NK. O bloqueio arrasta-se, nunca sendo totalmente levantado, e o exército azeri estabelece um posto de controlo no corredor de Lachin, em violação dos acordos de 2020.
O fim de Nagorno-Karabakh
A 19 de Setembro deste ano, as forças armadas do Azerbaijão lançam a derradeira ofensiva sobre NK. Em 24 horas, as forças do Azerbaijão bombardeiam as forças de NK ao largo da linha de contacto, avançando no território e tomando pontos estratégicos. Stepanakert é alvo de bombardeamentos indiscriminados.
O Azerbaijão exige a dissolução das forças militares e paramilitares arménias da República de Artsakh, a entrega de armas e equipamentos militares e a integração de NK na República do Azerbaijão. As forças de Artsakh, incapazes de travar o avanço azeri, capitulam.
A população de NK percebe o que isso significa – o fim. À dissolução das forças arménias e entrega das armas, uma coisa se seguirá: um novo genocídio.
Fazem-se à estrada, rumo à Arménia. Numa semana, mais de 100 mil arménios cruzam a fronteira.
O Corredor de Lachin está, finalmente, aberto. Desta vez, para partir e nunca mais voltar.
A “comunidade internacional” observa em silêncio. Não há condenações – o Azerbaijão é um “parceiro de confiança” e o seu gás necessário. A ONU, quando chega, só encontra cidades vazias. Os media calam. A deslocação forçada de toda uma população não passa de uma nota de rodapé.
Após séculos de presença arménia em Nagorno-Karabakh, a 15 de Outubro, Ilham Aliyev, presidente do Azerbaijão, hasteia a bandeira azeri numa Stepanakert deserta, capital da agora defunta República de Artsakh. Do outro lado, há 100 mil arménios sem terra.