A história de Nahel podia ser a de centenas de milhares de jovens descendentes de imigrantes oriundos do Magrebe, povos colonizados pela França que veem na metrópole uma oportunidade para ter uma vida. Não raras vezes, não é uma vida melhor, é só mesmo uma vida, por pior que seja. França tem um aproblema de racismo estrutural, como a esmagadora maioria dos países ocidentais, agravado por políticas de segregação das comunidades imigrantes nos tristemente célebres banlieue das grandes cidades, como Paris ou Marselha. A introdução crescente de medidas securitárias por parte dos diversos presidentes, que transformaram o estado de exceção numa exceção permanente para agradar ao discurso ultra securitário das extremas-direitas de Le Pen ou Zemmour, acabou por contribuir, em larga medida, para um sentimento de impunidade entre as forças de segurança. Desde o início de 2022, a polícia francesa matou 15 pessoas em operações de fiscalização de trânsito.
O fim do policiamento de proximidade
Implementado em 1998, o policiamento de proximidade acabou em 2003 com Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior. Foi implementado para tentar responder aos constantes abusos policiais perante negros e imigrantes, ao longos dos anos 90, mas tem três problemas que a generalidade do poder político não está disposta a abraçar: precisa de efetivo dedicado, de um investimento substancial nos profissionais e equipamentos de caráter não repressivo e os resultados são de médio e longo prazo. Há dois tipos de intervenção policial, que se caracterizam por preventiva ou repressiva. Uma questão meramente exemplificativa que os profissionais da polícia muitas vezes colocam é a seguinte: a boa polícia é aquela que multa pouco porque está na rua e dissuade, ou a que permite a prevaricação para atuar depois? O policiamento de proximidade é, em traços muito gerais, um programa de prevenção da criminalidade, feito em articulação com organizações e poderes locais. Com os atentados terroristas que aconteceram nos EUA e os que se lhe seguiram na Europa, chegaram os estados de exceção, já referidos, que foram vendidos como a nova normalidade a que tínhamos de nos habituar. Passou a ser normal ver os corpos de elite das forças de segurança no espaço público, fortemente armados, em toda a Europa.
A violência dos números
No caso francês, sem o policiamento de proximidade, o único contacto que as comunidades mais desfavorecidas e ostracizadas têm com o Estado é através da polícia em contexto de repressão. Estamos a falar de comunidades gigantescas de pessoas marginalizadas que, dizem as estatísticas, se forem negros, têm seis vezes mais probabilidade de serem parados em operações de fiscalização de trânsito e revistas do que um branco. Se for árabe, a probabilidade sobe para oito. Um em cada cinco cidadãos franceses filhos de imigrantes sente-se discriminado pela sociedade em geral. Em 2022, a taxa de desemprego em França era de 7,7% para os nascidos em França, 12% para os imigrantes e 17% para os imigrantes que chegaram ao país nos últimos dez anos.
Violência e resistência
Sendo a violência o único ponto de contacto entre o Estado e as camadas mais pobres e marginalizadas, é aqui que surge o confronto entre os oprimidos e os opressores. A polícia é a única face visível do Estado, nos arredores de Paris, fruto de uma política urbana e habitacional que criou guetos gigantescos para manter fora das avenidas parisienses os menos desejáveis. A juntar a isto, uma polícia cada vez mais transformada numa correia de transmissão das extremas-direitas, de que Ravina Shamdasani, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para as Migrações, deu nota, no dia 30 de junho, apelando ao governo francês para levar a cabo um combate eficaz ao racismo e discriminação que estão profundamente enraizados na polícia francesa. O caldo para a tempestade perfeita está criado e nem é preciso citar Brecht. A violência dos protestos pela morte de Nahel Merzouk é menor do que a violência exercida pelo Estado sobre estas camadas, a menos que o neoliberalismo nos tenha feito tão cegos que consideramos uma morte menos grave do que montras partidas e carros destruídos. Mas há um senão inegável nos protestos desencadeados pelo assassinato do jovem Nahel. É desorganizada e sem uma plataforma agregadora que lhe dê uma voz consistente de reivindicação para lá dos protestos violentos. Sem isso, a opressão será sempre cada vez maior e mais intensa e a resposta continuará a ser a revolta esporádica e o regresso aos banlieue. A falta de participação no jogo eleitoral burguês, enquanto este resistir, sem organização, seja em movimentos sociais seja num partido político, é o que mais interessa aos detentores do poder. Passarão sempre por arruaceiros violentos, mesmo que quem for honesto veja ali uma legítima manifestação de descontentamento. Porém, sabemos que a honestidade não é o forte das elites que controlam o poder. É necessário fazer o jogo deles até o tabuleiro ser nosso.
Tempo e dinheiro
As zonas mais afetadas pela violência policial são as mais pobres. Aquelas que, conforme demonstrado, estão abaixo da média em todos os indicadores que dizem respeito à qualidade de vida e integração. Sem uma reforma profunda da forma de encarar estas comunidades, a tensão continuará a subir, de parte a parte. São aqueles de quem ninguém quer saber. São os mais pobres dos mais pobres e os mais marginalizados dos marginalizados. São os sem-nome, de quem ninguém quer saber até que se fazem ouvir através da única maneira que o Estado lhes coloca à disposição: a violência. São pessoas sem identidade e pertença a coisa alguma, vistas como uma massa uniforme, caracterizadas pela direita e extrema-direita como gente sem rosto. Nahel Merzouk só ganhou um nome porque morreu, de outro modo, era só mais um.