Viver a gaita de foles ao som do associativismo

Dia após dia, há quem dê vida às gaitas de foles, repetindo um gesto com séculos de tradição no nosso país. O fascínio por este instrumento está mais vivo do que nunca e a Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita de Foles faz d’A Voz do Operário a sua casa.

A associação tem uma escola a funcionar, de segunda a sexta, nas instalações d’A Voz do Operário.

Não são poucas as vezes, ao fim da tarde, que se ouve o som de gaitas de foles nos corredores d’A Voz do Operário. Entre as muitas atividades a que a instituição serve de casa, a aprendizagem deste instrumento encontra o seu poiso, desde setembro de 2020, no edifício da Graça. Tiago Morais, o atual presidente da Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita de Foles, explica que A Voz tem sido um espaço onde todos se sentem em casa.

“Desenvolvemos o nosso trabalho de ensino assim como os ensaios da Orquestra de Foles n’A Voz do Operário, na Graça. Este é um protocolo que nos tem trazido um conforto e estabilidade de extrema importância. Conseguimos concentrar toda a nossa atividade educativa, permitindo com isso que a nossa escola funcione como um todo e que existam vários pontos de contacto entre as disciplinas, gerando uma maior partilha e sentimento de pertença entre os alunos”, considera.

Este é um outro ponto chave do trabalho da associação e pelas mãos destes professores já passaram centenas de alunos que “aprenderam e aprofundaram o seu conhecimento pela gaita de fole e outros instrumentos ligados à cultura popular”. O resultado mais visível do trabalho da escola da associação é a Orquestra de Foles, a banda que representa a associação.

Para tal, contribui também o peso histórico e simbólico “muito impregne nos valores do associativismo e solidariedade” com os quais também se identificam, num espaço que consideram ideal para desenvolver atividades como apresentações, oficinas e eventos. Foi o caso do LiberFolk em abril de 2022, um evento que querem voltar a repetir e que entendem só fazer sentido acontecer n’A Voz do Operário. “Por tudo o que representa e pelos valores que o festival também pretende transmitir”, defende Tiago Morais.

No ensino e promoção da cultura musical e das tradições, defende que coletividades como A Voz do Operário são “esteios da cultura popular” e que, mais que patrimoniais, são edifícios “de uma enorme elevação humana”. Segundo o presidente da Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita de Foles, isto acontece “por toda a história que carregam dentro, por serem espaços de partilha, de convívio, de sabedoria e aprendizagem” mas também por entender que Lisboa é uma cidade cada vez mais plural, “com tudo o que isso tem de bom e também de mau”, que precisa de coletividades como A Voz do Operário para “congregar e unir as pessoas em torno destas a”tividades e não só”. Esta instituição tem, entende, “uma responsabilidade social onde a música pode e deve ter também o seu espaço bem vincado”.

O amor à música cresce

A Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita de Foles foi fundada a 24 de março de 1999 depois de um grupo de pessoas interessadas no instrumento, incluindo alguns músicos profissionais, se terem juntado para criar um coletivo de gente com o objetivo de revitalizar o uso da gaita de foles. Cinco anos depois, Tiago Morais aderiu a esta associação.

“Desde jovem que frequentava festivais Folk, entre outros, nomeadamente o festival Intercéltico de Sendim, que teve grande importância no meu percurso”, descreve. No verão de 2004, soube que havia aulas deste instrumento dinamizadas pela associação na Incrível Almadense, coletividade de grande importância e longa história, com 175 anos ao serviço da comunidade. Então, Tiago Morais estava longe de saber que se dedicaria em exclusivo a esta atividade. “Há qualquer coisa no som da gaita de fole que nos cativa quando a escutamos pela primeira vez. A curiosidade fez o resto e felizmente tive bons professores que me motivaram a aprender mais e mais”, lembra.

Neste momento é, simultaneamente, o diretor musical da Orquestra de Foles, que prepara o seu segundo disco. “A par disso tenho o meu projeto Alma Menor, um duo de acordeão e gaita de foles que trabalha repertório de criação própria. Colaboro também com o grupo Fadomorse, que celebra este ano os seus 25 anos de carreira, entre outros projetos mais pontuais”.

Hoje, a Associação Portuguesa para o Estudo e Divulgação da Gaita de Foles, que encabeça, desenvolve o seu trabalho em várias áreas. Ao nível da investigação. Tiago Morais descreve que começaram por fazer o ponto da situação, realizando uma “recolha exaustiva de todos os dados existentes em relação ao instrumento e ao universo musical e social em que ele se insere, incluindo iconografia sobre gaita-de-foles em Portugal, fontes escritas e fontes fonográficas, fotográficas e audiovisuais”. Esta pesquisa culminou na produção de várias edições, sendo esta outra das componentes mais importantes da associação. A obra mais recente saiu em abril de 2022 sob o título Gaiteiros de Sesimbra, enquadrada dentro de uma coleção com o nome Gaiteiros da Estremadura, cujo objetivo é reforçar e dar a conhecer a importância deste património musical nesta região.

Outra das metas da associação tem sido a promoção de encontros e eventos que possam impulsionar o fenómeno social em torno deste instrumento. Tiago Morais dá os exemplos dos vários Encontros Nacionais de Gaiteiros que tiveram um papel fundamental para que tocadores tradicionais de distintas regiões do país se conhecessem pela primeira vez. “Tivemos assim tocadores estremenhos, minhotos , transmontanos e da Beira Litoral juntos pela primeira vez em plena partilha social e musical, fenómeno que se mantém até aos dias de hoje nos vários eventos promovidos pela associação ou em parceria ou apoiados por esta”, recorda.

Este ano, em julho, a associação vai estar na organização, em Palmela, do primeiro Encontro Internacional em Portugal com a participação de tocadores de todo o mundo.

A gaita de foles é património cultural

Os registos mais antigos deste instrumento em Portugal remontam à Idade Média, um pouco à imagem daquilo que aconteceu um pouco por toda a Europa, assim como no Norte de África e Médio Oriente, onde a gaita de foles assumiu importância na cultura de muitos destes povos e onde é utilizada de forma popular e cerimonial.

“Em Portugal vi eu ja, em cada casa pandeyro, e gayta em cada palheyro e de vinte anos aca, nam hahi gayta nem gayteyro”, escreveu Gil Vicente no Triunfo do Inverno, de Gil Vicente, de 1529.

A gaita de foles foi tocada em grande parte do território português, incluindo aquelas regiões às quais atualmente não se associa este instrumento, como o Alentejo, onde era tocada pelo menos ainda no século XIX.

São inúmeras as romarias que ainda hoje em dia não dispensam a tradição do gaiteiro. Na península de Setúbal, o costume está associado aos Círios, onde o gaiteiro assume principal destaque em vários dos momentos destas festividades, quer no peditório para a festa como depois na sua parte mais cerimonial e festiva.

Também em Alenquer, na Festa do Divino Espírito Santo, uma das mais antigas festividades de cariz popular ainda em atividade em Portugal, com mais de 700 anos, é o gaiteiro quem marca presença na frente da procissão como manda a tradição, indo à frente do padre, do cardeal e do bispo em muitos casos.

Na região centro, na zona de Coimbra, são inúmeras as festas patronais que não dispensam os gaiteiros, quer à frente das procissões, quer depois na animação e baile.

Em Trás-os-Montes, distrito de Bragança, é o gaiteiro quem dá o mote e acompanha as habituais festas de inverno, onde as máscaras e os trajes são a principal atração para muitos dos turistas e curiosos que ali acorrem quer por altura do Natal, quer depois, por altura do Entrudo, mas onde o gaiteiro é uma figura indispensável.

Já em Entre Douro e Minho, os célebres Zés Pereiras são marca de algumas das mais famosas e concorridas romarias do país, onde os gaiteiros acompanhados dos poderosos grupos de bombos são também eles símbolos e referências identitárias da cultura daquela região.

Em 2022, na final da Taça de Portugal de futebol, o hino nacional foi tocado por gaiteiros, entre outros instrumentos tradicionais.

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