Em Portugal ter emprego e receber salário pode não ser suficiente para sair de uma situação de pobreza. Dados do INE de 2020 indicam que 11,2% dos trabalhadores vivem nessas condições, isto é, trabalham, recebem um salário, mas esse salário não lhes permite sobreviver. O valor do salário, afere assim o INE, é inferior a 60% da mediana salarial dos portugueses, o que é, desde logo, um método de avaliação que pode esconder uma realidade bem mais complexa.
Um estudo desenvolvido e publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, coordenado pelo sociólogo e professor da Universidade Nova Fernando Diogo, refere que Portugal é um dos países da União Europeia onde o risco de pobreza dos trabalhadores é superior à média europeia. E porquê? Numa das suas conclusões aponta os baixos salários e a baixa qualificação como contributos decisivos para esta realidade.
Só que o estudo refere também que quando a qualificação é elevada, como aliás acontece na população portuguesa mais jovem recentemente chegada ao mercado de trabalho, o espartilho da pobreza não se quebra, porque a precariedade e os baixos salários passam a ser os fatores determinantes.
“Quando a qualificação é elevada, o espartilho da pobreza não se quebra, porque a precariedade e os baixos salários passam a ser os fatores determinantes.”
Mas não só. Ao longos dos últimos dez anos também os salários dos mais qualificados sofreram forte depreciação.
Poder-se-ia dizer que em Portugal o trabalho paga por ter e não ter qualificação. Quando a mão de obra é qualificada a precariedade pontifica, quando a mão de obra não é qualificada o baixo salário impera. É também por esta razão que o aumento do Salário Mínimo Nacional assume uma relevância enorme.
Dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), referidos numa análise aos salários dos portugueses nos últimos 10 anos, do economista Eugénio Rosa, dizem-nos que em 2019 o Salário Mínimo Nacional (SMN) representava já 59,7% da remuneração média ilíquida.
O que os dados nos dizem é que durante os últimos 10 anos o salário cresceu mais nos trabalhadores de baixa qualificação. Entre 2011 e 2019, refere Eugénio Rosa, “a remuneração base ilíquida dos quadros superiores diminuiu em 0,2%, a dos quadros médios aumentou apenas 3,9%, e a dos trabalhadores altamente qualificados teve uma subida de somente 0,2%, enquanto a remuneração média ilíquida dos trabalhadores menos qualificados (semiqualificados, não qualificados e aprendizes) aumentou entre 12,1% e 20,9%”.
Ainda assim os salários mais baixos continuam a ser depreciados por efeito da inflação, completamente desequilibrados relativamente à produtividade e o rendimento do trabalho continua paulatinamente a ser transferido para o rendimento do capital. Em suma, o rendimento do trabalho continua a ser insuficiente para elevar o nível de vida da população.
No “Barómetro das Crises”, documento produzido pelo Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, em julho de 2022, comparados dados do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSS), com dados do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) relativos aos salários auferidos pelos migrantes integrados no nosso mercado de trabalho, verifica-se que “em Portugal e para as mesmas funções, os homens recebem em média mais do que os homens estrangeiros, que, por sua vez, recebem mais do que a média das mulheres em Portugal, que, por sua vez, recebem mais do que as mulheres estrangeiras”.
Isto pode dar uma ideia, para além do entusiasmo manifestado por alguns empresários com o recente movimento migratório da Ucrânia, movimento que não é ainda contemplado nesta análise, de que a obsessão de alguns empresários não é propriamente a qualificação da mão-de-obra.
O Emprego e a Qualificação
A baixa qualificação parece não tirar o sono aos empresários portugueses já que, refere um outro estudo sobre a qualificação dos trabalhadores portugueses, desenvolvido pela Fundação José Neves, apenas 16% das empresas portuguesas faz formação permanente.
Outra das razões de preocupação é o não rejuvenescimento do mercado de trabalho português. As suas alterações nos últimos dez anos, segundo dados do INE citados num trabalho do economista Eugénio Rosa, dizem-nos que no período compreendido entre 2011/2021, “o emprego aumentou em apenas 72.000, mas os trabalhadores com ensino básico diminuíram em 1 203 000, sendo substituídos por trabalhadores com o ensino secundário (517 000) e com o ensino superior (758 000)”. Porém, refere o mesmo estudo, não foi à custa do trabalho jovem porque entre 2011 e 2020 a população empregada até aos 44 anos diminuiu em 309,1 mil e a população empregada com idade entre os 45 e os 64 anos aumentou em 413,3 mil. Isto é o aumento da mão-de-obra deve-se ao aumento de emprego na faixa dos mais de 45 anos.
Por outro lado, a redução da população trabalhadora mais jovem e mais qualificada deve-se, muito provavelmente, à emigração. E, um país que deixa sair, que estimula e aconselha a sua população mais jovem e mais qualificada a emigrar é um país condenado à pobreza.
Ora, muitos dos trabalhadores afastados do mercado de trabalho, para além da baixa qualificação, e ainda bem longe da idade da reforma – que em vez de contribuir para o rejuvenescimento do mercado de trabalho pelo contrário adia-o -, coloca uma particular importância dos apoios sociais.
Segundo dados do INE, citados por Eugénio Rosa, em 2021, “1.737.000 trabalhadores tinham contratos de trabalho precário, ou nem sequer tinham contrato, ou estavam no desemprego”, e destes só 40% recebiam subsídio.
Da mesma forma, o estudo desenvolvido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, que afere a situação de pobreza pela resposta negativa a pelo menos três das nove perguntas de um questionário, aponta também para um outro número dramático: 18% da população em situação de reforma, que trabalhou toda uma vida fazendo os seus descontos continua em situação de pobreza, num momento de maior vulnerabilidade. Daí a importância de que assume o aumento das pensões.
Transferência de Capital
Mas, este facto, que devia ser o ponto de partida do Orçamento do Estado no que se refere à redistribuição da riqueza, não vai acontecer e muito pelo contrário, com o efeito da inflação (8,7% de variação homóloga em junho) e a reduzida subida dos salários. Tal como aconteceu em 2014, vamos assistir em Portugal a uma brutal transferência de rendimentos do trabalho para os rendimentos do capital.
O economista João Ferreira do Amaral alerta exatamente para isso quando refere, num programa semanal da Rádio Observador, que “para que se verifique uma evolução equilibrada, os salários reais, descontada a evolução dos preços, devem crescer tanto como a produtividade. Embora a produtividade tenha crescido muito pouco, o salário médio cresceu menos ainda. Não houve por isso uma evolução equilibrada em termos de salários reais dos trabalhadores, pelo contrário, houve uma situação desequilibrada em desfavor dos trabalhadores”. E, acrescenta o economista: “A evolução deste ano [2022], com a inflação que está aí e com o não acompanhamento por parte dos rendimentos salariais, vai agravar ainda mais o problema.”
Os Direitos
No plano dos direitos, Tiago Cunha, economista do Gabinete de Estudos da CGTP, alerta para a importância de dois princípios fundamentais na Contratação Coletiva: “O princípio do tratamento mais favorável e o da não caducidade dos contratos”. Diz Tiago Cunha que estes dois elementos conjugados “têm sido aproveitados pelo patronato para a chantagem sobre as organizações de trabalhadores” como desincentivo ao processo de contratação coletiva. Isto é, as entidades patronais “ameaçam, e em alguns casos concretizam, a caducidade do contrato para tentar impor normas mais desfavoráveis para os trabalhadores”. Desta forma, tentam forçar o retrocesso de todo o conjunto de direitos até aí consagrados, utilizando essa prerrogativa como forma de degradar as condições de trabalho, tornando as relações laborais mais desequilibradas, desvalorizando, assim, o trabalho.
“Um país que deixa sair a sua população mais jovem e mais qualificada é um país condenado à pobreza.”
Porque, refere Tiago Cunha, uma vez “ultrapassado o período de vigência do contrato coletivo, grande parte dos direitos que ele consagrava e que foram objeto de contratação em negociações anteriores deixam também de vigorar”. Defende este economista que esta ameaça, que pende sobre as condições de trabalho, em vez de dinamizarem um processo negocial que tenda a melhorar as condições de vida de quem trabalha, pelo contrário “servem como elemento de chantagem nos processos de negociação” e têm levado à degradação da contração da contratação coletiva, seja do número de convenções publicadas, dos conteúdos ou ainda dos trabalhadores abrangidos pela renovação dos contratos coletivos.