Opinião

A Voz dos Livros

Terra Velha, de José Manuel Sampaio

Terra Velha, de José Manuel Sampaio

Partindo de um episódio singular, a luta dos rendeiros de Alterim pelo direito a permanecer nas terras que granjeavam há mais de 90 anos, José Sampaio constrói um épico poderoso, numa linguagem que percorre os diversos estratos sociais, desde os que são analfabetos, aos que têm hábitos de leitura, até aos que sabem escrever o nome, ou como Alberto, licenciados e com bastos conhecimentos políticos.

Neste texto/documento, mesmo quando a verdade histórica entronca na ficcionalidade, como nesta peça acontece, torna-se necessário que o espectador tenha algum espaço de respiração para que o essencial do que é dito se não perca na urgência de contar, de passar a ideia central. Para tanto, o autor utiliza alguns processos discursivos (os diálogos com as mulheres, p.ex.) que vão pontuando a acção. José Sampaio sabe destes mecanismos que habitam o texto teatral, daí que as mulheres, de língua mais solta e desinibida, actuem como descompressores da injustiça, da gravidade política que nos é narrada. O autor sabe dessa condição e utiliza-a com mestria.

Este livro é um poderoso épico, com nomes, rostos, palavras de um povo que se ergueu do chão raso da ignomínia e cantou o dia claro e o direito a respirar livremente na sua própria pátria.

No contexto actual onde, por toda a Europa assistimos perplexos ao ressurgimento de grupos nazi-fascistas, que se aproveitam do jogo democrático para subverter as instituições e impor de novo a barbárie e o terror, a importância deste livro, e de tantos outros que fizeram/fazem o inventário crítico e factual da História recente do nosso povo, e da Europa em geral, torna-se um documento determinante e incontornável. Mas não se pense que este livro/documento exacerba a política, dado que é o humano, a verdade testemunhal de quantos viveram esses tempos, que percorre o corpus desta escrita que se faz contida, certeira e despojada como uma peça sobre a memória histórica dos seus protagonistas deve ser.

Independentemente de sabermos se esta peça cumprirá a sua função primordial – ser encenada e tornar-se actuante nas tábuas de um palco – ela está aqui, na perenidade das palavras e do que nas páginas deste livro se conta. Documento fidedigno da vida, das memórias e da luta de uma comunidade, afirmando que é possível, através da luta e da razão, mudar o rumo dos acontecimentos. Mudar a vida, porque, como está escrito, de modo corajoso, numa tabuleta à beira dos valados: Estas terras pertencem-nos. Estamos aqui há 90 anos. Ou seja, desde sempre.

Terra Velha, de José Manuel Sampaio – edição Página a Página/202

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