Jorge Silva Melo, figura central da arte e da cultura em Portugal morreu no passado dia 14 de março. Diplomado em realização na London Film School, fez a sua primeira incursão no cinema em 1980, com “Passagem ou a Meio Caminho”. Um filme em grande parte rodado n’A Voz do Operário.
O 25 de Abril tinha acontecido há meia dúzia de anos. O filme retrata os últimos tempos do escritor revolucionário alemão Georg Büchner (1813-1837), como relata Jorge Silva Melo em voz-off logo no início. Na verdade, acompanhamos o fervor revolucionário de um grupo de jovens, em especial de um deles, bem como as suas tentativas para escrever, imprimir e divulgar um panfleto subversivo.
Os cenários nada têm que ver com os lugares por onde Büchner andou. Um dos décores centrais é a biblioteca da A Voz do Operário. É lá que Büchner (interpretado por Luís Lucas) vai no arranque do filme para falar com um sujeito mais velho (interpretado por João Guedes), sobre os seus projectos para escrever um panfleto. É também na biblioteca d’ A Voz do Operário que o jovem colectivo se reúne, nas mesas rodeadas de estantes e livros, para discutir política, cultura e formas de fazer a sua revolução intelectual.
Nada Jorge Silva Melo esconde do seu tempo. Estamos no século XIX, e também com aqueles que, entre nós, mesmo depois da revolução de Abril, continuaram a ter ideais, ideologia, combatividade – apesar de outro tipo de censuras se terem instalado subtilmente na sociedade.
Dentro de uma estrutura onírica (que parece ser a do filme), as intenções de Silva Melo são evidentes: estabelecer a ligação entre um jovem alemão – cuja obra ficou esquecida – e toda uma geração que viveu a juventude nos últimos anos do fascismo em Portugal, e tentou depois manter a fibra revolucionária no pós-25 de Abril.
A rebeldia e o inconformismo da juventude n’A Voz do Operário
“Passagem ou A Meio Caminho” possui a febrilidade dos que querem fazer coisas com uma liberdade que é muito mais que se puder falar livremente nas ruas ou entre paredes. Os que na juventude ficaram a meio caminho entre as conquistas de Abril e aquilo que a revolução não trouxe. Quando perceberam, com desencanto, que as desigualdades económicas e sociais continuavam, assim como no próprio acesso à arte e cultura.
A consciência de classe e a consciência de que era ainda urgente combater o silêncio das injustiças estavam no grupo retratado na primeira-obra de Silva Melo. Personagens com a gravidade e o desejo dos heróis dos grandes filmes, em permanente movimento, com vontade de rever velhos padrões, e de não se encaixarem nas definições que a sociedade capitalista construía.
Em “Passagem ou A Meio Caminho” são recorrentes as fugas da biblioteca depois das referidas reuniões; as descidas desenfreadas pelas escadarias principais d’A Voz do Operário destes jovens rebeldes que lutam por uma causa, e andam em busca de si mesmos e de um futuro. Fugas por lugares que reconhecemos, apesar dos anos que nos distam da rodagem: escadas que vão dar ao exterior e a viaturas que depois percorrem a toda a velocidade as ruas de uma nocturna Lisboa (nunca mencionada).
Jorge Silva Melo queria combater a conformidade e a apatia. Sabia que pertence aos jovens a motivação para questionar; o inconformismo e a resistência. Esta força existia na sociedade de Büchner no século XIX, e em 1980 em Portugal, quando se começou a proclamar a morte das ideologias. Existe hoje na juventude que tem as suas palavras a dizer, as suas razões para contestar – e se quer fazer ouvir nas ruas, bem como nas formas que encontra para se exprimir artística, social, política e intelectualmente. Aqueles que não se querem calar, que não cedem ao medo e às incertezas, e que possuem a mesma força de viver que sentimos em “Passagem ou A Meio Caminho”. Um filme que “só nos mostra personagens humanos, homens e mulheres de corpo inteiro, com inteira memória e inteira história. A tradição intervém por aqui mas todos os que traíram deixamos de os ver e só ficam connosco, até ao fim, os que foram fiéis. Muitos os chamados, poucos os escolhidos”, escreveu João Benárd da Costa, na respectiva folha de sala da Cinemateca Portuguesa.
Num filme sobre liberdade, resistência e luta não é acidental a escolha como cenários fundamentais os corredores, escadarias, espaços exteriores e sobretudo a biblioteca d’A Voz do Operário.
Jorge Silva Melo nunca deixou de olhar à volta, de ser subversivo e simultaneamente lúcido, em tudo o que escreveu, filmou e encenou.