Nega-se o aquecimento global, que a Terra seja redonda, que as vacinas imunizem. Hoje, as opiniões contam mais do que os factos, uma boa história vale mais do que a ciência. Crenças espirituais, teorias da conspiração e a religião do empreendedorismo misturam-se num cocktail perigoso.

Três homens percorrem as ruas da Venteira, na Amadora, a 29 de julho, com latas de spray e acabam detidos. Na manhã seguinte, a indignação da população é geral. As paredes dos prédios, contentores do lixo e até automóveis têm mensagens que questionam a pandemia e a vacina contra a covid-19. 

A proliferação de informações falsas nas redes sociais e a organização de grupos negacionistas em relação à pandemia não é uma novidade. O último Relatório de Segurança Interna, os Serviços de Informações de Segurança (SIS) deu conta de uma aproximação entre grupos de extrema-direita e “movimentos sociais inorgânicos, designadamente os negacionistas da pandemia”. Os serviços de inteligência alertam no documento para os “riscos de radicalização violenta online de jovens portugueses, que poderão conduzir, nos próximos anos, ao agravamento” desta ameaça.

Como se pode ler no relatório, “nos extremismos políticos, apesar de a pandemia ter obrigado ao cancelamento de muitas das atividades tradicionais (reuniões, conferências, concertos), o confinamento imposto aumentou o tempo de exposição da sociedade em geral, e dos jovens em particular, aos meios online e abriu um leque de oportunidades para que os movimentos radicais de extrema-direita disseminassem conteúdos de propaganda e desinformação digital, com vista a aumentar as suas bases de apoio, galvanizar os sentimentos antissistema e a reforçar a radicalização com base xenófoba, recorrendo ao discurso apelativo da violência e do ódio, num momento em que a sociedade portuguesa é, também, confrontada com fenómenos de polarização ideológica”. 

“Nunca vacinaria um filho meu”

“Vacinei-me, já posso ter 5G”, tem sido uma afirmação comum nas redes sociais. Para a maioria é uma anedota, para uma minoria é uma teoria real, entre as muitas versões quanto aos efeitos secundários ou “dissimulados” da vacinação. Um dos protagonistas desta batalha pela desinformação é João Tilly. O professor de matemática no agrupamento de escolas de Seia é presidente do Conselho Nacional do Chega e é também líder distrital de Viseu, cuja estrutura foi, no dia 23 de julho, acusada de agredir um homossexual num café, junto à sede do partido de extrema-direita, segundo o Expresso. Com mais de 70 mil seguidores no Facebook e quase 48 mil no Youtube, João Tilly é conhecido por questionar o conhecimento científico adquirido ao longo de mais de ano e meio de pandemia. Usa expressões como o “negócio multimilionário das vacinas obrigatórias” e “lobby farmacêutico”, não porque conteste a mercantilização dos cuidados de saúde, mas porque pretende associar o seu negacionismo a uma estética anti-sistema. “Eu, com quase 57, apesar de nunca ter estado gravemente doente, aprendi pelo que vi – e se eu vi coisas! – que a medicina em Portugal, nomeadamente no SNS, para doentes “anónimos” é uma treta pegada, pouco mais do que uma curandice. Por isso digo: NUNCA na minha vida – mas NUNCA MESMO – eu me vacinaria a mim ou vacinaria um filho meu, se voltasse a ter mais algum”, afirmou num ataque às vacinas em geral.

Há poucos dias, o dirigente de extrema-direita provocou um verdadeiro terramoto nas redes sociais ao anunciar que decidira vacinar-se contra a covid-19. Os argumentos que apresentou não convenceram centenas de seguidores desiludidos que insultaram a incoerência de João Tilly.

Já Kátia Aveiro, irmã de Cristiano Ronaldo, alegou que a pandemia era uma fraude e não se vacinou. Acabou internada com uma pneumonia como consequência da covid-19 e entrou em polémica com o jornalista Luís Osório que a acusou de não ter cuidado com o que dizia enquanto irmã de uma figura com uma influência tão grande. 

Mas a descrença nas vacinas não é um fenómento que surgiu com a pandemia. Em 1998, o movimento anti-vacinas cresceu quando o médico Andrew Wakefield publicou, na revista The Lancet, o artigo “MMR vaccination and autism”, que associava a vacinação contra o sarampo, papeira e rubéola ao síndrome do espetro autista. Só anos mais tarde, o estudo foi considerado fraudulento e o autor expulso da comunidade científica e proibido de exercer medicina.

Num estudo publicado em 2016, no The Journal of the American Medical Association (JAMA), os médicos e investigadores da Universidade de Emory, em Atlanta, Estados Unidos, afirmavam que “uma parte substancial dos casos de sarampo nos Estados Unidos, na era posterior à sua eliminação, foram [de pessoas] não vacinadas intencionalmente”. A investigação teve em conta todos os dados sobre surtos de sarampo e de tosse convulsa naquele país desde 2000, a data em que aquelas duas doenças foram consideradas eliminadas. O número de casos de ambas as doenças aumentou sistematicamente até à publicação do estudo, “o que esteve associado ao fenómeno da recusa da vacinação”, reforçou a equipa coordenada por Saad Omer.

Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que as vacinas evitam entre dois a três milhões de mortes por ano. Como não chegam a toda a população do mundo, dois milhões de pessoas morrem anualmente vítimas de patologias que poderiam ser evitadas através da imunização conferida pelas vacinas. Há vários estudos que apontam para a prevalência de comportamentos anti-vacina sobretudo entre as camadas médias e altas da população, com dinheiro e melhor acesso a cuidados de saúde. Dados apresentados na obra Medicina sem enganos, de 2015, mostravam que alguns bairros da Califórnia tinham uma taxa de vacinação semelhante à do Sudão do Sul. Os movimento anti-vacinas aproveitam as redes sociais para disseminar mitos que exageram os efeitos secundários, manipulam os números para minimizar o grau de efetividade da imunização e defendem o “natural” contra o “químico”, num caldo de teorias da conspiração.

Em 2019, o conselho de ministros da Alemanha aprovou multas, que podem chegar aos 2500 euros, para os pais que decidam não vacinar os seus filhos em idade escolar contra o sarampo. No ano anterior, contabilizaram-se 543 casos de sarampo naquele país.

Um cocktail negacionista

Quando rebentaram as primeiras manifestações contra as medidas de proteção, em setembro de 2020, em Berlim, o panorama dos protestos era algo bizarro. “A pandemia é mentira”, “as máscaras não são necessárias” e “o que falta é amor e derrubar o governo” eram consignas que juntavam uma amálgama muito peculiar. Houve de tudo. Abraços coletivos, música tibetana, bandeiras nazis, rastafaris e cabeças rapadas, lado a lado com suásticas e bandeiras com as cores do arco-íris e o símbolo da paz.

A pandemia tem sido palco de todo o tipo de teorias da conspiração e a extrema-direita aproveita, perantea tolerância de vários governos, para usar fake news como veículo para alimentar a descrença na ciência. Logo no começo da crise sanitária, Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, entre outros, fizeram declarações políticas e tomaram decisões sem fundamentos científicos, legitimando este tipo de movimentos.

A crise do capitalismo, a descrença nas instituições e a proliferação de todo o tipo de religiões e movimentos espirituais propaga-se pelas redes sociais. Nos Estados Unidos, a QAnon defende que estrelas de Hollywood e políticos democratas como Tom Hanks e Hillary Clinton são satânicos que controlam o mundo. Para este grupo, Donald Trump é um enviado de Deus para derrotar esta conspiração e inaugurar a era do amor. Pode parecer uma teoria demasiado absurda para ser levada a sério mas a verdade é que o Congresso dos Estados Unidos levou o assunto a ser discutido pelos representantes.

Embora tenha passado meio século, o movimento New Age parece viver um revivalismo. As comunidades ocultistas e metafísicas que inauguravam uma ´nova era de amor e luz através da transformação e cura interior` parecem ter ganho um novo fôlego com as redes sociais e com a descrença na ciência. Mas simultaneamente com a ´religião do empreendedorismo e a crença no sucesso individual`. Com vários livros publicados sobre o New Age, o sociólogo Steve Bruce destacou que este movimento atraía, sobretudo, indivíduos bem sucedidos, instruídos e de classe média. A doutrina do sucesso individual contribui para a crença de que o seu êxito se dá através dos seus próprios esforços. Trata-se de mma espécie de religião de auto-ajuda que o sociólogo enquadrou na natureza individualista das sociedades modernas e que Paul Heelas, autor do ´Movimento New Age: a celebração do eu e a sacralização da modernidade`, atribuiu também ao declínio das religiões tradicionais.

Agora, as redes sociais promovem youtubers que têm o protagonismo que nenhum cientista alguma vez teve e difundem qualquer tipo de “teoria” sem comprovação científica ou factualidade. Em setembro de 2019, a atriz Jessica Athayde anunciava, num documentário sobre a sua gravidez, que tinha decidido comer a placenta a seguir ao parto, como outras figuras públicas como Kim e Kourtney Kardashian, Chrissy Teigen e Hillay Duff. Todas alegaram tê-lo feito para prevenir uma depressão pós-parto. À MAGG, a obstreta Alexandrina Branco afirmou que não se opunha a que as mulheres tomassem essa decisão mas apenas pelo efeito placebo. “Algo que é inócuo, mas que traz benefícios para a pessoa, não é necessariamente mau. A pessoa mentaliza-se que está bem, sem necessidade de tratamentos mais agressivos como antidepressivos”, considerou. Contudo, segundo o mesmo meio, médicos apontam para o risco de infeção e contaminação pelas toxinas e hormonas que se acumulam na placenta durante a gestação e realçam que a eficácia destes processos no tratamento de doenças não foi ainda demonstrada. O American Journal of Obstetrics & Gynecology concluiu mesmo que ainda que haja um fascínio cada vez maior pela placenta “não existe nenhuma evidência científica dos benefícios clínicos da placentofagia humana”.

A disseminação dos valores do individualismo e da supremacia da opinião pessoal são o esteio da filosofia liberal. A liberdade individual acima de tudo, até da ciência, numa era em que houve até quem inventasse o conceito de pós-verdade, pode muitas vezes ser fonte de teorias inócuas mas, como mostram os dados da OMS há doenças que estão de volta porque houve quem deliberadamente não quisesse vacinar os seus próprios filhos em nome de crenças espirituais ou teorias da conspiração.

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