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A primeira biografia portuguesa de Karl Marx

O primeiro livro escrito e publicado em Portugal sobre a vida e obra de Karl Marx surgiu em Outubro de 1930. O seu autor foi o professor Emílio Costa. Além de colaborador deste jornal, ele viria a ser diretor escolar d’A Voz do Operário. Fez parte de uma série de notáveis pedagogos antifascistas que exerceram esse cargo entre 1929 e 1937, com Adolfo Lima, Mariano Roque Laia e Simões Raposo Junior.

Emílio Costa

Emílio Costa nasceu em 1877 em Portalegre. Foi uma das grandes referências intelectuais do sindicalismo português na primeira metade do século XX. Além de ter integrado a Associação dos Professores de Portugal, precursora da actual FENPROF.

Numa altura que viveu em Paris, chegou a ser secretário do pedagogo catalão Francesc Ferrer, o fundador da “Escola Moderna” que morreu fuzilado pelo estado espanhol em 1909.

Anarquista, Emílio Costa esteve ligado à maçonaria e à carbonária. Foi preso político na monarquia, apoiou a implantação da República, foi dirigente da revista Seara Nova e ainda se destacou no Movimento de Uni- dade Democrática (MUD) contra a ditadura de Salazar. Faleceu em 1952.

José da Silva Oliveira

O editor que publicou a primeira biografia portuguesa de Karl Marx também merece ser recordado. Antigo operário gráfico, seu nome era José da Silva Oliveira. Nasceu em 1890 na Póvoa do Varzim. Em 1919 ele foi um dos 17 fundadores da Federação Maximalista, estrutura embrião do Partido Comunista Português, ao lado do empregado ferroviário Manuel Ribeiro, do operário metalúrgico António Peixe, e do operário da construção civil Joaquim Cardoso, entre outros. Faleceu em 1948.

Um livro “perigoso”

Simplesmente intitulado “Karl Marx”, este livro do professor Emílio Costa recebeu na altura elogios pela sua clareza e imparcialidade. Perante a aguda divisão entre anarquistas e comunistas que se verificava no movimento operário português, marcou desde logo uma diferença.

Dos comentários na imprensa da época, destacamos aquele que seria na altura o mais importante jornal sindical português: O Reduto, órgão da Federação dos Trabalhadores dos Transportes e Comunicações. Era dirigido por José de Sousa, um dos principais responsáveis pela reorganização de 1929 do PCP, que lançou este partido na resistência clandestina contra a ditadura.

Aludindo que Emílio Costa não era marxista, O Reduto apontou que havia neste livro “rebeldias naturais de um professor anarquista”, mas sublinhou que “por outro lado encontramos, com abundância, conceitos do autor impregnados de um profundo marxismo”.

Já o Diário de Notícias considerou que se tratava de um livro “perigoso”. E a ditadura militar concordou: acabou sendo apreendido pela polícia nas livrarias de Lisboa…

Marx desconhecido

Historiadores como Alfredo Margarido e António Ventura têm apontado que Emílio Costa revelava um conhecimento muito limitado da obra de Marx. Parece realmente ter-se baseado sobretudo em fontes indirectas, no que outros autores tinham comentado, e não num conhecimento directo.

Ainda assim, Emílio Costa apresentava uma análise com várias semelhanças à de Marcel Ollivier, colaborador do Instituto Marx-Engels em Moscovo, que prefaciou e traduziu para França uma biografia de Marx na mesma época.

Ambos apontaram que o marxismo era muito mal conhecido nos respectivos países. E criticaram por isso os velhos partidos socialistas, apontando que a Revolução Russa é que tinha despertado uma renovada difusão internacional do marxismo.

Grande parte da obra de Marx ainda não tinha sido publicada e não era conhecida de todo. Incluindo livros tão importantes para se compreender o seu pensamento como os Manuscritos Economico-filosóficos de 1844 ou os Grundrisse.

Lénine nunca chegou a conhecer esses textos que denotavam a influência de Hegel, o filósofo que mais marcou Marx. Mas teve uma intuição que o levou, três anos antes da revolução Russa de 1917, a estudar directamente a dialéctica de Hegel. E foi ao ponto de dizer que ainda nenhum marxista tinha realmente compreendido Marx! (Lénine, Cahiers sur la dialectique de Hegel, Éditions Gallimard, Paris, 1967, p.241)

Luta de classes

Onde Lénine pretendia chegar era à crítica do reformismo da 2a Internacional Socialista. O marxismo tendeu aí a ser lido como um determinismo economicista para quem a transformação social seria uma espécie de herança pacífica do desenvolvimento do capitalismo, menosprezando a luta de classes e a importância da acção consciente e organizada da classe trabalhadora.

Tal como Marcel Ollivier, Emílio Costa também chegou aí.

Criticando as leituras do marxismo demasiado deterministas, o futuro diretor escolar d’A Voz do Operário citou uma advertência de Friederich Engels: “a evolução política, jurídica, filosófica, religiosa, literária, artística, etc, assenta sobre a evolução económica. Mas todas elas reagem umas sobre as outras e sobre a base económica”. E concluiu com Engels: “não é que a situação económica seja a única causa activa, e tudo o mais apenas um efeito passivo”. Embora condicionados por ela, “os próprios homens é que fazem a sua história”.

Emílio Costa dedicou a primeira biografia portuguesa de Karl Marx “à memória daqueles, já levados pela morte, que em Portugal consagraram o melhor da sua vida à causa da emancipação dos trabalhadores – dos pobres, dos oprimidos”.

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